Eterna luta

Desde os primórdios, desde que o mundo é mundo e humano, convivemos com guerras, violência, ganância. Bem didaticamente, a ideia de que o mal é a ausência do bem é “uma visão filosófica e religiosa que sugere que o mal não é uma substância ou entidade independente, mas sim a falta ou privação do bem. Essa perspectiva é frequentemente associada a Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.

 

Ao comando, na direção musical e regência de "Matraga", no Palácio das Artes, toda a elegância e talento da maestra Ligia Amadio. Foto: Nelson Almeida/Divulgação

 

Luta inglória

Para Agostinho, por exemplo, o mal é a privação do Bem, como as trevas são a ausência da luz.  Para Aquino, é a ausência do Bem, seja da perfeição suprema (Deus) ou de um bem menor que deveria estar presente. O Mal, nesse sentido, é uma imperfeição ou uma falta. Ou seja, o Mal não é criado por Deus, mas sim uma consequência da falta de perfeição ou da ausência de algo que deveria estar presente. 

Inglória e musical

Se preferirem a filosofia de Jean-Jacques, Rousseau, o homem nasce bom, mas é corrompido pela sociedade, então a corrupção da sociedade deve ser atribuída à própria sociedade, às suas estruturas, instituições e práticas que moldam o comportamento humano. Tem também aquele samba, “Chico Brito”, de Wilson Baptista de Oliveira e Affonso Brito Teixeira, na voz maviosa e maravilhosa de Paulinho da Viola.

 

Parte do grande elenco da ópera "Matraga", encenação da infinita luta entre o bem e o mal
Foto: Guto Muniz/Divulgação

 

Musical e Fatal

“Chico, Brito, quando menino, teve na escola, era aplicado, tinha religião. Quando jogava bola era escolhido para capitão, mas a vida tem os seus revezes, diz sempre Chico defendendo teses, se o homem nasceu bom, e bom não se conservou, a culpa é da sociedade que o transformou”. Mais ou menos, certo? Tem muito canalha aí que nasceu prontinho e de frente pro crime.

Fatal e Sensacional

Quem quiser “testar” estas teses, não pode perder ou pode rever um grande sucesso de público e crítica em 2023, a ópera “Matraga”, de Rufo Herrera, de volta ao Palácio das Artes com o universo do sertão de João Guimarães Rosa. Mais uma vez, o impecável espetáculo tem direção musical de Ligia Amadio, regente titular da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais.

 

Mais um detalhe do mágico cenário da ópera "Matraga", no Palácio das Artes
Foto: Guto Muniz

 

 

 

 

Sensacional e Mágica

A direção cênica é da atriz e dramaturga Rita Clemente; com a “obrigatória e perfeita participação” do Coral Lírico de Minas Gerais e da Cia de Dança Palácio das Artes. Como dizíamos; “Matraga”, da obra de Guimarães Rosa, é ópera, em três atos, de Rufo Herrera e encantará nos dias 17, às 19h, 18, às 18h, 19 e 20, às 20h, onde merece e cabe: no Grande Teatro Cemig Palácio das Artes.

Mágica e Real

Baseada em “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, último conto de “Sagarana”, primeiro livro de Guimarães Rosa (1908-1967), a ópera “Matraga” é um “Faroeste Caboclo” e Guimarães Rosa, um   “Dostoiévski do Sertão”. Vida e redenção, crime e castigo, o bem e o mal, a hora e a vez, morte e salvação de Augusto Matraga. 

 

Real e Palpável

“Matraga” tem libreto e música de Rufo Herrera. Grande elenco de solistas e a narração do ator Gilson de Barros, conhecido pela intimidade com a obra de Rosa. No ano de 2023, a produção teve uma pré-estreia emocionante na Gruta do Maquiné, em Cordisburgo – terra do escritor –, e logo depois foi sucesso em Belo Horizonte, reunindo mais de cinco mil espectadores em quatro récitas no Palácio das Artes.

 

Cena da ópera "Matraga", de Rufo Herrera, repetindo o sucesso de 2023
Foto: Paulo Lacerda

 

 

 

 

Palpável e Rica

Mais alguns sedutores detalhes, Rita Clemente tem assistência de Ronaldo Zero; cenografia de Miriam Menezes; figurinos de Sayonara Lopes; iluminação de Gabriel Pederneiras; direção coreográfica de Alex Soares; preparação do Coral Lírico feita por Augusto Pimenta e André Brant e direção-geral de Cláudia Malta.

 

Rica e Profunda

“A Hora e a Vez de Augusto Matraga” é o último e o mais emblemático conto de livro “Sagarana” (1946), onde o regional encontra o universal; onde as Minas Gerais, de Guimarães Rosa, encontram a Rússia de Dostoiévski. Em Dostoiévski, a vida é o inferno, sempre depois de uma profunda reflexão filosófica da existência, da justiça, e da moral.

Detalhe do belíssimo cenário da ópera "Matraga", baseada no conto "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", de Guimarães Rosa
Foto: Guto Muniz

 

Profunda e Certa

“Se as pessoas buscam o reino da justiça na Terra, o reino da razão, elas acabarão chegando à ruína, ao desumano, ao mundo opressor”. “No que diz respeito aos quatro principais romances de Dostoiévski – ‘Crime e Castigo’ (1866), ‘O Idiota’ (1869), ‘Os demônios’ (1872) e ‘Os Irmãos Karamázov’ (1879) - todos tratam da relação do ser humano com Deus”, destaca a professora de Literatura Russa da Universidade de São Paulo Elena Vássina.

 

Certa e líquida

Em uma carta ao tradutor de sua obra para o italiano, Edoardo Bizarri, em 1963, Guimarães Rosa confessa: “sou profundamente, essencialmente religioso. Daí todas as minhas, constantes, preocupações religiosas, metafísicas embeberem os meus livros. Os livros são como eu sou”.

Líquida e Turva

Uma curiosidade! Antes da pandemia da Covid-19, no projeto de remição de penas pela leitura, criado em 2012, pelo Ministério da Justiça, eram cinco livros os mais lidos do ano nos presídios federais. Nenhum deles, de autoajuda. O campeão era “Crime e Castigo”, de Dostoievski, seguido de “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo, “Sagarana” e “Grande Sertão: Veredas”, ambos de Guimarães Rosa e “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. A cada livro lido, menos quatro dias da pena.

Turva e Cristalina

Durante a pandemia, “Crime e Castigo” perdeu o posto de líder absoluto de mais lidos entre presos mais violentos. Foi substituído pelo best-seller “A Cabana”, do canadense William P. Young, que trata do sofrimento de um homem que tem a filha de cinco anos brutalmente assassinada e, após o crime, começa um debate sobre a fé e a origem da dor que o acomete.

Cristalina e Previsível

No conto de Guimarães Rosa, Augusto Matraga é um fazendeiro poderoso e violento, “duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato”, rude como as terras remotas de Minas. Por temperamento, desprezo e ganância, perde tudo; dinheiro, posses e mais. Traído pela mulher, Dionóra, ao tentar recuperá-la e vingar sua honra, Matraga é emboscado e espancado por seus inimigos, os capangas do Major Consilva. 

 

Previsível e Possível

Atirado de um despenhadeiro num abismo, é dado como morto. Salvo pela bondade de um casal humilde, em busca do perdão para seus pecados e de um lugar no Céu, apega-se à religiosidade. Aparentemente resignado, Augusto conhece então o jagunço Joãozinho Bem-Bem, “o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa”, que desperta seus instintos mais primitivos. 

 

Possível e Inevitável

Matraga oscila entre a crença, a esperança – que não consegue abandonar – e a violência de sua natureza. Para o presidente da Fundação Clóvis Salgado, Sérgio Rodrigo Reis, “’Matraga’ é um espetáculo ousado, contemporâneo, com características operísticas e sob inspiração de uma dramaturgia tipicamente mineira. Escolhemos o que em Minas é mais universal: a genialidade de João Guimarães Rosa”.

 

Curtas & Finas

*A abordagem de Rufo Herrera traz João Guimarães Rosa para dentro da obra que, como narrador, caminha pelo sertão.

“Minha opção pelo conto ‘A Hora e a Vez de Augusto Matraga’ para uma obra cênico-musical, devo-a, à sua força poética e sua filosófica revelação do ser humano em profundidade”. 

“‘O homem lá, onde João Guimarães Rosa o foi buscar – O Sertão das Gerais – oscila permanentemente entre o Bem e o Mal. Ora se apruma, ora cai ao nível da fera, ora paira acima de Deus e do diabo’”.

“O sertão de João Guimarães Rosa, de Minas Gerais, não é o sertão de Jorge Amado, Glauber Rocha e da Bahia.  Não é o Velho Oeste de Clint Eastwood e dos Estados Unidos”. 

“É a terra de coronéis, cangaceiros, sertanejos, justiceiros e pistoleiros, no dilema entre o livre-arbítrio e o determinismo com suas consequências, ainda mais violentas e injustas”. 

“Nhô Augusto se redime da violência não por arrependimento, mas pelo desespero da eternidade”.

“Narrado em terceira pessoa, o conto enfatiza duas constantes no sertão: a violência e a crença”. 

“E uma inconstante, a redenção do crime, com castigo, penitência, perdão e destino, através do catolicismo popular”.

“Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa mais a passar, mas sempre passa”. 

“E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria… Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”.

“E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi”.  “Matraga” é onde os fracos não têm vez e mesmo os fortes têm hora e vez.