Quase 90% do estado do Rio Grande do Sul foi afetado pelas enchentes, que deixaram milhares de pessoas desalojadas ou desabrigadas e causaram o comprometimento de diversas estruturas, derrubaram pontes, destruíram avenidas e devastaram bairros inteiros. Em alguns casos, como em Eldorado do Sul, todo o município ficou debaixo d’água.
Reconstruir essas cidades é um grande desafio para poderes públicos e sociedade civil. Afinal, é muito grande a possibilidade de que as populações das cidades gaúchas revivam a tragédia em futuras enchentes, caso as cidades continuem não prevendo a força da natureza. Para que os problemas não se repitam, é fundamental que casas, ruas e redes de esgoto sejam reconstruídas a partir da prevenção para os efeitos extremos das mudanças climáticas.
A própria ministra do Meio Ambiente e Mudança no Clima, Marina Silva, adiantou na última sexta-feira (10) que "as pontes levadas pelas correntezas não poderão ser reconstruídas no mesmo lugar e não terão a mesma altura (...). Alguns bairros e comunidades talvez tenham que ser removidos para outras áreas, e tudo isso é muito doloroso".
De acordo com urbanistas, para que essas cidades possam se reerguer, é necessário levar em consideração novas formas de urbanização e não cometer “erros” do passado, a fim de mitigar possíveis danos em caso de futuras enchentes.
Em conversa com a reportagem, especialistas enumeram cuidados que deverão ser tomados no processo de reconstrução dessas cidades. Confira:
Considerar a legislação ambiental
Antes de traçar qualquer plano de ação para reestruturar essas cidades, é importante lembrar que existe um arcabouço legal que orienta sobre o que pode e o que não pode ser feito nas cidades. Os artigos 182 e 183 da Constituição Federal instituem a Política de Desenvolvimento Urbano e indicam o Plano Diretor como instrumento necessário ao planejamento e à expansão urbana.
E é a partir de leis como essa que o arquiteto urbanista do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) William Mog trabalha em cima para projetar um plano de reestruturação das cidades afetadas pelas enchentes. Ele atua no Centro de Apoio Operacional da Ordem Urbanística e Questões Fundiárias (CAOUurb), que vem trabalhando, desde outubro de 2023, em um projeto voltado para o Vale do Taquari, área devastada por enchentes em setembro e novembro do ano passado, e afetada novamente neste ano. Com as enchentes mais recentes, o projeto está sendo expandido e o caso do Vale do Taquari se transformará em um piloto para as demais localidades.
“Um dos parâmetros que, na nossa leitura aqui no centro de apoio, é o mais significativo é a necessária integração do plano diretor do município com o plano de bacia da região hidrográfica, ou seja, o município não tem simplesmente autonomia para legislar sobre o seu uso de ocupação do território nesses casos específicos, sem olhar para o plano da bacia, que é algo regional e muito mais amplo”, argumenta.
O urbanista explica que as propostas do grupo de estudo estão, inclusive, amparadas por essas leis, mas pondera que o ordenamento jurídico precisa ser adaptado para a nova realidade. “Cada elemento da urbanização tem uma amarração legal, temos um arcabouço jurídico-institucional. Acontece que esse arcabouço precisa ser ajustado conforme a nova realidade. E é isso que estamos propondo aqui”, diz.
O professor do departamento de urbanismo da UFMG e pesquisador do núcleo da região metropolitana de BH do Observatório das Metrópoles Rogério Palhares reforça que as legislações de cunho ambiental vêm sendo ignoradas há muitos anos. “A gente vem sistematicamente, nos últimos anos, falando de um movimento de flexibilização da legislação ambiental, como se o limite ambiental ou as restrições ambientais fossem empecilho para o desenvolvimento”, afirma. “A gente precisa dessas leis, inclusive mais rígidas e mais pautadas pelo princípio da precaução. A gente andou sendo irresponsável com a flexibilização da legislação”, critica.
Vale lembrar que o Código Florestal Brasileiro, aprovado em 2012, mudou, por exemplo, a legislação sobre ocupações e intervenções perto das margens dos rios. Pela regra, a área de preservação permanente (APPs) compreende a área localizada a 30 metros dos cursos d’água de menos de 10 metros de largura (distância que muda de acordo com a largura do rio - para largura superior a 600 metros, a APP terá 500 metros). Antes, essas APPs eram consideradas a partir da maior área de cheia do rio. Com a mudança em 2012, ele passou a desconsiderar a área de cheia e contar a partir da calha do rio. Além disso, as APPs podem ter vegetação nativa ou vegetação exótica.
Pensar a urbanização para além dos limites dos municípios
O professor de recursos hídricos e infraestrutura urbana do Ibmec Leonardo Augusto dos Santos reforça a importância de considerar o curso d’água. Segundo ele, muitas questões são tratadas no limite territorial do município, quando, na verdade, os problemas estão no âmbito da bacia hidrográfica, porque ela perpassa por mais de uma cidade. Ele explica que os processos de urbanização precisam levar em consideração esse curso d’água em toda a sua extensão. E, para isso, é preciso a integração de órgãos federais, estaduais e municipais.
“A Agência Nacional de Águas (ANA) exerce um papel preponderante a nível nacional, também estamos falando de órgãos com características de Defesa Civil, órgãos dos setores de geologia, que tratam das questões de condições geológicas da região, por exemplo”, cita.
E é exatamente pensando na bacia hidrográfica que consiste o projeto do CAOUrb. William explica que, dessa forma, o processo de urbanização garante que outros municípios não sejam afetados pelas decisões de cidades vizinhas (uma intervenção em um rio pode levar problemas a jusante, ou seja, ao fim do curso d’água).
Leonardo dos Santos observa ainda que essa preocupação com todos os municípios em igualdade de tratamento é importante para o estado. “É natural que as partes mais abastadas comecem a se erguer primeiramente. Mas esse descompasso não é nada essencial numa reconstrução plena de um estado”, alerta.
“Se o poder público deixa uma população menos abastada em situação de vulnerabilidade, fatalmente, essas pessoas vão voltar para os lugares onde elas encontram espaço para expandir. E, geralmente, será nesses locais que deveriam estar desocupados (margens de rios)”, completa.
Não repetir erros do passado
Para Rogério Palhares, há décadas vimos praticando o que ele chama de “urbanização predatória”, totalmente descolada da realidade da natureza, ignorando o relevo, a cobertura vegetal, as águas e as características do solo. No Rio Grande do Sul, por exemplo, apenas 7% da Mata Atlântica está preservada. “Estou falando de densidades que extrapolam a capacidade de suporte das infraestruturas, excesso de impermeabilização do solo, obras de engenharia que são paliativas e muitas vezes viabilizam a ocupação numa parte da cidade, mas, de certa forma, comprometem as outras áreas”, diz.
“A canalização de rio, que é um padrão nas nossas cidades, resolve pontualmente o problema da inundação, transferindo para jusante aquele volume excessivo de chuva. Isso transfere para baixo os problemas e logo se torna insuficiente, porque a bacia como um todo acaba sendo impermeabilizada”, exemplifica.
Rogério também cita a infraestrutura de drenagem de esgotamento sanitário, que muitas vezes não comporta os níveis de adensamento e verticalização concentrados nos centros urbanos. “Sem falar nos impactos na paisagem, no patrimônio cultural. Ou seja, a gente tem praticado um urbanismo que eu falo predatório porque ele não incorpora esses tais limites e essa tal capacidade de suporte”.
Sair de perto dos rios, mesmo que signifique excluir comunidades inteiras
William Mog conta que, na região do Vale do Taquari, por exemplo, boa parte das áreas se desenvolveu na parte das inundações, comuns em margens de rios. Acontece que, ao longo do tempo, os núcleos urbanos começaram a se expandir e tomar porte de cidade. “Do ponto de vista ambiental, isso representa um grande risco”, diz. E uma das propostas é repensar a reordenação desses locais.
“A gente está trabalhando com uma série de diretrizes, e uma delas seria justamente o reassentamento de uma parte da cidade dessas áreas com risco iminente enchente ou de inundação. E, nesse sentido, é verdade que algumas dessas cidades teriam que simplesmente sair do mapa, porque todo território delas está numa planície de inundação”, afirma.
Como consequência, as famílias que moram nessas áreas sujeitas a inundação precisariam ser realocadas em outros espaços seguros. Um processo oneroso para o Estado, mas necessário, segundo William. “A gente identificou que, em algumas áreas, não tem como não ser dessa forma”, lamenta. Nesse sentido, nessa quarta-feira (15), o governo federal anunciou que irá comprar casas para quem ficou desabrigado após as enchentes, por meio do Minha Casa Minha Vida.
O urbanista explica que os passos dessa urbanização seguem faixas que, segundo o projeto do CAOUrb, seriam:
- Desocupar áreas de inundação, reconhecendo qual a dimensão dessas áreas de acordo com o curso d’água
- Reconstruir a floresta e a vegetação nas margens (elas ajudam a reter e infiltrar as águas, diminuindo o impacto das chuvas)
- Criar restrições nas áreas urbanizadas para se precaver quanto às novas possíveis cheias do rio (como construção de edificações com pilares altos e preparados para possíveis inundações)
- Flexibilizar as regras para construção das edificações à medida que se afastarem dos rios e estiverem em uma área mais protegida
“No momento em que tu libera o solo que antes estava impermeabilizado pela urbanização, torna ele permeável de novo e coloca vegetação de novo, naturalmente tu está ganhando um aliado nesse enfrentamento à mudança climática”, diz. Essas propostas serão entregues ao estado do Rio Grande do Sul, com base no ordenamento jurídico e em estudos do relevo das áreas afetadas. William lembra que cada região precisará de uma ação específica.
Incrementar a resiliência dos municípios
O coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas Leandro Letti pondera que o processo de reestruturação dessas cidades será longo e precisará de muitas análises antes de qualquer ação. “Ainda é muito cedo para a gente tecer qualquer especulação sobre o formato de reconstrução. Porque foi um fenômeno totalmente anômalo. A gente ainda não tem um histórico muito grande como esse tipo de evento no Brasil”, diz.
“Mas, de maneira geral, a questão para as cidades brasileiras, que sempre foi discutida e não é uma novidade, é a questão de incrementar a resiliência de toda a área urbanizada, considerando o ciclo ecológico e o ciclo hidrológico no processo de planejamento. Mas as cidades brasileiras romperam com isso há muito tempo”, critica.
A resiliência citada por Leandro diz sobre a capacidade de se reerguer diante de novos fenômenos naturais. Ele lembra, por exemplo, que é básico considerar questões relacionadas às matas ciliares, ao risco da declividade, às áreas de topo de morro. Em caso de chuvas, é importante ter um dissipador de energia - papel exercido pelas próprias florestas, que vão ajudar a reduzir o impacto das chuvas. Além de ter áreas para ajudar a infiltrar as águas.
Segundo o urbanista, essas questões básicas precisam ser levadas a sério no processo de reconstrução. “As pessoas ainda lidam com a questão do ambiente como algo externo, então, ficam com essa questão de ‘olha, tem que respeitar o meio ambiente’. Não! Não é só respeitar o meio ambiente, tem que entender que é um processo físico químico. Não é questão de educação ambiental, é política de estado”, critica.