O recorde de ano mais quente já registrado na Terra, hoje ocupado por 2023, pode ser batido por 2024, segundo as previsões globais mais recentes. Com tanto calor, vem também a seca. Todo o Estado de Minas Gerais está sob influência dela, segundo o Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Em Belo Horizonte, não chove há mais de cem dias, e a projeção é de chuvas só no final de setembro. O Operador nacional do sistema elétrico (ONS) chegou a recomendar a antecipação do uso de termelétricas para evitar qualquer risco de apagão. Frente à estiagem, vem também a preocupação: faltarão água e energia elétrica?
Imediatamente, segundo os principais indicadores, não. Sem novas chuvas nos próximos meses, porém, a tensão aumenta, avaliam comitês de bacias hidrográficas do Estado. Os principais reservatórios de energia hidrelétrica de Minas não estão, atualmente, em um nível considerado crítico, segundo a Cemig, que lista o percentual de abastecimento de cada um deles: Theodomiro Carneiro Santiago - Emborcação (61,36%), Nova Ponte (60,52%), Três Marias (56,75%) e Irapé (60,37%).
“Importante destacar que o período chuvoso na região Sudeste do Brasil vai de outubro a março e que, portanto, estamos em plena época de estiagem, com tendência de diminuição dos volumes até o final da estação seca”, sublinha a companhia, em nota.
Isso não quer dizer que não haja qualquer motivo para preocupação. É o que enfatiza o presidente interino do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), que inclui a usina de Três Marias, Marcus Vinícius Polignano. “Eu não poderia chamar essa situação de confortável, mas ainda é suportável. Evidentemente, prolongando-se a seca, isso com certeza criará situações de fragilidade. Não temos previsão de chuvas, só para outubro e olhe lá”.
O volume do subsistema de Furnas, outro dos principais do Estado, está em aproximadamente 54,3%, de acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). “A baixa da água em Furnas além da cota 762 é preocupante, principalmente por ocorrer ainda em agosto, acendendo alertas para discussões que devem ser feitas durante todo o ano”, completa a vice-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Grande (CBH Grande), Maria Isabela de Souza. A cota a que ela se refere é o volume de água em comparação ao nível do mar, que idealmente não pode ficar abaixo de 762 m.
A situação atual resgata o fantasma da última crise energética provocada por uma seca no Brasil, em 2021. Por ora, os indicadores não chegam ao mesmo patamar. Em agosto daquele ano, o nível de todos os maiores reservatórios do Estado não passava de 50%. O volume da Represa de Furnas ficou abaixo de 15% em setembro.
Um sistema interligado
Em nota, o ONS afirma que não há registro de problema no atendimento energético do país e que “o Sistema Interligado Nacional (SIN) dispõe de recursos suficientes para atender a demanda por energia”, sem risco de desabastecimento. Ele reconhece, contudo, que a disponibilidade hídrica está baixa, portanto sugere algumas medidas para impedir o agravamento do quadro, como o acionamento antecipado de termelétricas. “A disponibilidade de energia elétrica é mantida com acionamento das usinas termelétricas, o que obriga a utilização de bandeiras diferenciadas e aumento significativo do valor a ser pago nas contas”, lembra a vice-presidente do CBH Grande, Maria Isabela de Souza.
Em agosto, a bandeira da tarifa de luz voltou a ficar verde, depois de passar um mês amarela, o que significa uma conta mais barata para os brasileiros. Isso foi possível, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), devido ao volume de chuvas no Sul. A cor muda — de verde até vermelho — quando as termelétricas precisam ser acionadas a fim de compensar a redução da produção hidrelétrica. No patamar mais alto da bandeira, isso significa um acréscimo de R$ 7,877 para cada 100 kWh utilizado. Considerando a média de 167,8 kWh de consumo nas casas do Sudeste em 2023, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), isso representa pelo menos R$ 13 a mais na conta de luz, além dos impostos.
A Cemig também reforça que o sistema de energia elétrica brasileiro é interligado — quando o abastecimento de uma região é comprometido, pode ser compensado pelo de outras. “O país é dividido em quatro subsistemas na questão de geração: o subsistema Sudeste/Centro-Oeste, o subsistema Sul, o subsistema Nordeste e o subsistema Norte. As usinas de Minas Gerais estão, majoritariamente, no subsistema Sudeste/Centro-Oeste que apresenta o nível de armazenamento, em 20 de agosto de 2024 de 58,56%, conforme dados do ONS”, detalha a empresa.
Importante lembrar que, embora a hidrelétrica seja a principal matriz produtora de energia elétrica do Brasil, o percentual de participação dessa tecnologia entre toda eletricidade produzida no país vem caindo. Ainda assim, hoje, corresponde a pelo menos 60% da geração de energia no país, segundo a Aneel — dividindo espaço com energia eólica, solar, biomassa, gás natural e nuclear.
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E a água?
A Copasa afirma que o nível dos reservatórios de abastecimento de água “está dentro dos padrões de normalidade para este período do ano”. Ainda que, oficialmente, não haja risco iminente, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), que representa a principal bacia responsável pelo abastecimento de BH e região, avalia que a situação atual é crítica e preocupa-se com o futuro próximo.
“Não trabalho na Copasa e não vou afirmar que há risco de desabastecimento. Mas a situação não está normal para este período em que estamos. Estamos em um período de estiagem, que é comum, mas há perda de vazão de água. Continuamos a ter um período de chuvas consideráveis, mas o sistema não está sendo restabelecido. Temos um problema notório somado ao desmatamento, às mudanças climáticas e ao uso inadequado de água”, diz a presidente do comitê, Poliana Valgas. Dos anos 80 até 2020, a bacia perdeu 40% de sua superfície d’água, segundo a rede MapBiomas.
“A bacia vem perdendo sua capacidade de resiliência, e isso aponta que precisamos pensar cada vez mais em preservar áreas de recarga em Ouro Preto, Nova Lima... São regiões estratégicas. Se não, no ano que vem falaremos que a situação piorou, como ocorre ano a ano”, conclui Valgas.
Mudanças climáticas colocam reservatórios na mira
Ainda que hoje o cenário não seja tão alarmante quanto o de três anos atrás ou da crise hídrica de 2015, há no ar avisos do quão grave ele pode se tornar, pondera o presidente interino do CBHSF, Marcus Vinícius Polignano. “As mudanças climáticas estão na ordem do dia, e sabíamos de antemão que essa questão de períodos de estiagem sempre provocariam preocupação. O que está ocorrendo com as mudanças climáticas é que eles estão mais intensos e prolongados. Quando olhamos para as nossas bacias, especialmente a São Francisco, isso fica mais claro, porque ela gera uma quantidade importante de energia para o Brasil, especialmente para o Sudeste. Ela não é importante só para a geração de energia, mas para manter o volume de água que segue para várias cidades”.
A representante da CBH Grande, Maria Isabela de Souza, também destaca: “as mudanças climáticas e o aquecimento global têm contribuído para a escassez de água em todo o país. Junto com o desmatamento na Amazônia e as reiteradas queimadas, vem a diminuição da distribuição de umidade principalmente nas regiões centro-oeste e sudeste, afetando de sobremaneira regiões consideradas importantes para a recarga de água”. Já faz tempo, lembram ela e Polignano, que o alarme das mudanças climáticas está soando para as bacias hidrográficas — e não existe sinal de que deixará de soar.