A jovem Tayrine Novak, de 33 anos, enfrenta dificuldades para garantir alimentação adequada para a filha Thaylla, de 9 anos, diagnosticada com doença celíaca em novembro de 2023. A criança, que estuda em período integral na Escola Municipal Professora Egipciana Swain Paraná Carrano, em Araucária, no Paraná, teria sido submetida a constrangimentos pelas adaptações na alimentação.
O caso ganhou repercussão neste mês de abril após uma reunião entre a mãe e representantes da instituição, após um pedaço de bolo de cenoura com cobertura de chocolate levado por Thaylla gerar reclamação de outro pai. A Secretaria Municipal de Educação (Semed) convocou Tayrine para uma reunião em 7 de abril, sem informar previamente o assunto.
No encontro, que durou aproximadamente uma hora, Tayrine foi questionada por seis servidores da Educação sobre a cobertura do bolo, considerada inadequada segundo o cardápio escolar. A mãe explicou que adapta as refeições conforme as possibilidades econômicas da família.
Durante a conversa, o chefe de gabinete da pasta, Eduardo Schamme, afirmou: "A lei é muito clara, o alimento precisa ser semelhante e não destoar, não é o que você quer". Uma das participantes chegou a sugerir que a criança ficasse sem comer na escola quando a mãe não pudesse seguir o cardápio estabelecido.
Desde 2003, passou a ser obrigatório pela Lei Federal nº 10.674 que todos os alimentos industrializados informem em seus rótulos a presença ou não de glúten para resguardar o direito à saúde dos portadores de doença celíaca. Embora exista uma variedade cada vez maior de produtos com essa descrição, ainda há muita desinformação a respeito da doença.
Exposição nas redes sociais e registro de boletim de ocorrência
Tayrine gravou a reunião e compartilhou trechos nas redes sociais. No dia 22 de abril, a família registrou um boletim de ocorrência contra uma professora da escola que, segundo a mãe, teria constrangido Thaylla em sala de aula. "O bullying foi provocado por uma professora, a que ela mais gostava da escola", afirmou a mãe. As informações são da UOL.
Três advogados de Brasília - Daniel J. Kaefer, Eder Fior e Eduardo Càrdoso Kivel - ofereceram apoio jurídico à família. Em nota, declararam: "Manifestamos profundo repúdio à utilização da máquina pública como instrumento de opressão contra cidadãos em situação de vulnerabilidade e hipossuficiência econômica. Em vez de acolhimento, empatia, solidariedade e inclusão -- princípios basilares da Administração Pública, especialmente no ambiente escolar --, presenciamos a distorção da função estatal em afronta direta à dignidade humana".
A equipe jurídica informou que "todas as medidas legais e cabíveis estão sendo adotadas, incluindo representações administrativas, atuação junto ao Ministério Público e estudo de eventual ação judicial visando à responsabilização dos envolvidos e à garantia plena dos direitos da menor e de sua família".
Desde a divulgação dos vídeos, Tayrine tem recebido mensagens de apoio e relatos semelhantes. "Existem muitas famílias e celíacos que passaram por situações piores ou que estão passando. Estou recebendo relatos absurdos", disse.
A mãe destacou as dificuldades financeiras enfrentadas por famílias com membros celíacos. "Uma pessoa normal pode ir na panificadora logo cedo comprar pãozinho quentinho. Para o celíaco é mais difícil, os alimentos são caros. Um pacote de pão normal, com trigo, pode ser encontrado por R$ 3,50 na promoção. Já o pão para celíaco é metade desse pacote e custa entre R$ 28,00 e R$ 36,00", explicou.
Indícios de contaminação cruzada agravaram quadro da criança
O problema começou a se agravar em abril de 2024, quando exames de Thaylla indicaram possível contaminação cruzada. Com laudo médico atestando que a criança não poderia consumir alimentos com glúten, Tayrine estabeleceu um acordo com a escola para enviar marmitas para a filha.
A condição de intolerância ao glúten é comumente percebida nos primeiros anos de vida da criança, logo que o glúten é introduzido na dieta, mas também pode se desenvolver em qualquer idade. Alguns pacientes, inclusive, chegam a manifestar os primeiros sintomas apenas na vida adulta.
Em setembro, o Conselho de Alimentação Escolar acionou o Ministério Público do Paraná contra Tayrine. Em reunião na promotoria, a mãe explicou a situação e informou a melhora no quadro de saúde da filha após as refeições passarem a ser preparadas em casa.
A promotora de Justiça determinou que deveria haver diálogo entre as partes "sempre com foco na saúde da criança" e que a escola enviasse semanalmente o cardápio para que a mãe pudesse se preparar. Em outubro, Tayrine registrou uma reclamação informando que a escola não cumpria o acordo.
Prefeitura apresenta justificativas e promete investigação
A Prefeitura de Araucária informou à reportagem da UOL que a rede municipal atende mais de 18 mil estudantes, sendo 14 diagnosticados com doença celíaca. A administração oferece 46 cardápios diferentes, elaborados por nutricionistas e adaptados às restrições alimentares.
Segundo a nota oficial, durante a reunião foram apresentadas alternativas à mãe, como utilizar o cardápio especial para celíacos, fornecer ingredientes para preparo doméstico ou permitir que a criança levasse alimentos de casa. A prefeitura alegou que Tayrine não aceitou as sugestões e "ao invés de procurar um entendimento que fosse razoável para todos, preferiu postar trechos da reunião nas redes sociais."
A administração municipal informou que abrirá sindicância para investigar possível contaminação cruzada e planeja ações de conscientização sobre educação alimentar.
O que é a doença celíaca e quais impactos à saúde
De acordo com a Federação Nacional das Associações de Celíacos do Brasil (Fenacelbra), a doença celíaca atinge aproximadamente dois milhões de brasileiros, sendo que 80% não têm o diagnóstico conhecido e 70% só têm conhecimento após os 20 anos de idade.
A doença celíaca é uma condição imunológica que ativa fatores inflamatórios quando ocorre a ingestão de glúten, podendo causar lesões intestinais. A doença celíaca é determinada, em grande parte, por fatores genéticos, o que pode afetar várias pessoas da mesma família. "Ela (a doença) tem um componente genético muito forte, então cerca de 70% dos fatores são genéticos, enquanto aproximadamente 30% são ambientais, relacionados à alimentação e outros aspectos de hábitos de vida," explica Ricardo Di Lazzaro, geneticista e cofundador da Genera, da Dasa.
O médico Paulo Boarini, especialista em cirurgia geral e coloproctologia, explica as consequências da doença não tratada: "Os intolerantes não desenvolvem anticorpos e, pela má absorção, podem desenvolver anemia, desnutrição, irritação de pele e prurido, baixa de cálcio e osteoporose, déficit em crescimento, dores articulares (na fase adulta) e, inclusive, morte".
A maioria dos sintomas de quem recebe o diagnóstico é gastrointestinais, como diarreia, vômito, dores abdominais, mas existem outros sinais que não são necessariamente ligados a isso, como por exemplo: a perda de peso, dores de cabeça e nas articulações, anemia, dentre outros. O especialista diz ainda que a predisposição para intolerância ao glúten pode ser detectada precocemente por meio de testes genéticos, que hoje são importantes aliados da medicina preventiva, indicando se um indivíduo tem um risco elevado de desenvolver essa doença no futuro.
Tayrine fez um apelo por mais compreensão sobre a condição. "Não é uma dieta por escolha. O celíaco não tem opção, faz para ter saúde ou pode vir a óbito. Espero que as pessoas olhem para o próximo sem julgar e que tenham leis mais firmes para que, quando ocorra com uma mãe o que está ocorrendo comigo, as pessoas sejam punidas. Qual mãe não quer saúde para o filho?", questionou.