Para além do tráfico de drogas e armas, o crime organizado avança em setores da economia para manter a sustentabilidade das operações de facções criminosas não só no Brasil - mas em outros países. Um relatório publicado nesta quarta-feira (25) pelo Instituto Esfera de Estudos e Inovação, em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, detalhou a operação do Primeiro Comando da Capital (PCC), e de outros grupos, que utilizam de fintechs, apostas virtuais - bets -, cripto ativos e outras modalidades para lavar bilhões de reais com origem no crime.
A entrada nesses setores é facilitada, conforme a pesquisa, por uma fragilidade regulatória, mas também por falta de estrutura de funcionários do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Entre 2015 e 2024, as comunicações de operações financeiras suspeitas ao Coaf dispararam 766,6%. O órgão, contudo, não recebeu um incremento de funcionários e seguiu com 93 servidores para identificar as possíveis fraudes.
Para se ter ideia da dimensão do problema, em 2024 foram registradas 2.566.713 comunicações de transações que geraram dúvidas. Considerando o número total de agentes do Coaf, cada servidor teria, em média, 27,5 mil casos para análise. “Este crescimento decorre, em partes, da ampliação do escopo de setores obrigados pelas regras regulatórias a prestar informações e, ainda, do esforço institucional do Estado brasileiro de fortalecer o sistema de prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Mas também pode revelar o crescimento da lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio na economia”, diz o relatório.
Fintechs ‘escondem’ bilhões do crime
No uso das fintechs, o estudo indica que grupos criminosos aproveitaram-se da demora para regulamentação das instituições financeiras no Brasil, o que só foi feito em 2018 com a publicação de duas resoluções que ainda passam por aprimoramentos. O relatório mostra que, atualmente, apenas parte das fintechs opera sob a supervisão do Banco Central. São 1.592 empresas do tipo no país, sendo que 334 - apenas 21% -, são regulamentadas pelo BC.
Um exemplo citado na pesquisa foi uma operação, do Ministério Público de São Paulo e da Polícia Federal, que mostrou como duas fintechs - 2GO Bank e Invbank - receberam dinheiro de integrantes do PCC e repassaram para contas de laranjas. As empresas atuariam, segundo as investigações, como banco para casas de apostas, corretora de criptomoedas e investidores do mercado esportivo, além de firmar contratos com construtoras para comprar imóveis de luxo.
O esquema teria movimentado mais de R$ 6 bilhões no Brasil e em países como Estados Unidos, Paraguai, Argentina, Holanda, Itália e China. "Na ausência de regulamentação e controles rígidos, estas instituições vêm sendo utilizadas para lavar dinheiro do crime", apontou o relatório. O estudo ainda mostrou que as organizações criminosas utilizam das fintechs para criar contas gráficas e contas bolsão.
"A conta gráfica é uma conta corrente operacional, usada normalmente como se fosse pessoal, mas que não está em nome do usuário final. Ela é aberta e mantida por uma fintech em nome do próprio CNPJ da empresa, hospedada em um banco tradicional autorizado pelo Banco Central. Como o dinheiro não fica vinculado ao CPF do usuário, fica blindado de bloqueios judiciais e investigações patrimoniais, impedindo o rastreamento por parte do Coaf ou do Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário", detalhou.
Já nas contas de bolsão, consideradas mais desafiadoras às autoridades, as fintechs depositam valores de vários clientes em uma conta consolidada, sem separação formal por titularidade. "Assim, apenas a fintech sabe quanto de dinheiro é de propriedade de cada usuário, tornando quase impossível aos órgãos estatais rastrear de quem é o dinheiro", ilustrou o relatório.
Bets
Já nas bets esportivas, o problema também tem origem na regulamentação. No país, o setor, que movimentou até R$ 130 bilhões em 2024, foi autorizado a funcionar em 2018, por meio da Lei 13.576, que estabeleceu um prazo de dois anos para a regulamentação do setor - o que só ocorreu em 2023, por meio da Lei 14.790, responsável por estabelecer regras para o setor.
"Neste ínterim, o mercado das bets cresceu de forma desordenada e sem nenhum tipo de supervisão estatal, consolidando-se como uma indústria bilionária que, na ausência de regulamentação específica, deu margem para o desenvolvimento de práticas ilegais como lavagem de dinheiro de organizações criminosas", sublinhou o relatório.
Uma operação da Polícia Federal, em 2024, indicou que o PCC movimentou mais de R$ 300 milhões no Ceará, São Paulo e Santa Catarina, em um esquema de tráfico de drogas e armas e exploração de jogos de azar. Um dos investigados é sobrinho de Marcola, conhecido como a principal liderança do PCC.
O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, manifestou, durante o lançamento do relatório, preocupação com o uso das apostas esportivas online, as chamadas bets, para a lavagem de dinheiro. “Os jogos online de apostas são um canal de risco para lavagem de dinheiro. Estado e o setor privado precisam agir com firmeza para não permitir que o crime organizado os use para ampliar seus tentáculos e suas operações financeiras”, disse o presidente da Febraban.