Nesta terça-feira (6), o Museu do Ipiranga, em São Paulo, reabrirá as portas e o público terá a oportunidade de rever, de pertinho, uma das obras mais conhecidas do país. Trata-se da tela “Independência ou Morte”, finalizada por Pedro Américo em 1888, sob encomenda do governo de dom Pedro II. A imagem foi tão difundida entre os brasileiros ao longo dos anos, que muitos enxergam ali um retrato fiel do que aconteceu às margens do rio Ipiranga, no dia 7 de setembro de 1822.
Mas o quadro está muito longe de retratar com veracidade o que teria acontecido na vila de São Paulo naquela data. O próprio Pedro Américo reconheceu em texto que imprimiu alterações, propondo um equilíbrio entre “verdade” e “idealização” ao desenvolver a obra, já concebida para integrar o Museu do Ipiranga. “A realidade inspira, e não escraviza o pintor”, escreveu.
No livro “O sequestro da Independência”, recém-lançado pela Companhia das Letras, os autores Carlos Lima Junior, Lilia Schwarcz e Lúcia Klück Stumpf analisam a construção de símbolos nacionalistas e o uso do imaginário em torno da independência do Brasil em diferentes momentos da história. O quadro de Pedro Américo, claro, ganha destaque na análise.
Confira alguns pontos apontados pelos autores de diferenças entre a realidade e o quadro “Independência ou Morte”:
- Sabe-se que as viagens distantes, no início do século XIX, eram feitas em mulas. Mas Américo preferiu retratar o príncipe e sua comitiva sobre cavalos, em nome de um “interesse moral e artístico do seu trabalho”;
- A casa retratada à direita do quadro não existia em setembro de 1822. Ela havia sido erguida na década de 1940. “Popularmente conhecida como a Casa do Grito, a residência feita de pau a pique subsiste no Parque da Independência, e durante o século XIX foi uma espécie de venda, servindo de pouso para viajantes. Aliás, em meio aos festejos do IV Centenário da Cidade de São Paulo, uma janela foi aberta para que a construção ficasse ainda mais semelhante à do quadro de Américo”;
- A documentação histórica aponta que dom Pedro encontrava-se com a saúde bastante abalada naquele 7 de setembro, por conta de uma persistente dor de barriga. Mas Américo entendeu que isso não poderia transparecer na pintura. “Não deveria o artista alterar desfavoravelmente os traços do augusto moço naquele momento solene”, escreveu o pintor;
- Américo alterou a topografia do local onde teria acontecido o “grito do Ipiranga”. “Para satisfazer o desejo geral de ver representado o célebre riacho do Ipiranga - o qual na realidade passaria à distância de alguns metros atrás de quem observa o painel -, forcei a perspectiva pintando um simulacro de corrente aos pés dos cavalos do primeiro plano”, admitiu o pintor em seu livro;
- No quadro, há homens uniformizados como Guarda de Honra, farda que só seria criada meses após a independência. Na verdade, durante a viagem por São Paulo, o futuro imperador e os homens da comitiva certamente usavam roupas mais confortáveis;
- No quadro, o povo é representado por um carreiro, de torso desnudo e pés no chão. Ele observa a cena com surpresa. “O ato de Independência não possui, portanto, participação popular na interpretação de Pedro Américo; o povo seria apenas espectador das decisões tomadas pelos homens à testa do governo”, escreveram os autores. Porém, hoje sabe-se que o processo de independência movimentou milhares de pessoas, em um processo de negociações e lutas em diversas províncias;
- Não é possível comprovar se houve um juramento às margens do Ipiranga com o príncipe e seus oficiais levantando as armas, mas apresentar espadas erguidas foi uma forma encontrada por Américo para representar o momento.
Construção de símbolos
De acordo com os autores de "O sequestro da Independência", “imagens não são nada ingênuas; elas veiculam discursos, escolhas e negociações conflituosas, para serem favorecidas pela ação do tempo. Esses são os retratos na nacionalidade e do poder, que costumam apagar os alicerces de sua construção e seus certificados de nascimento”.
Em entrevista a O TEMPO, Lilia Schwarcz explica que o processo de construção de símbolos nacionalistas se desenvolve nas décadas finais do século XIX, não somente no Brasil, mas em todo o mundo.
Não à toa, a encomenda para Pedro Américo é feita em 1886, mais de 40 anos após a independência do país. "dom Pedro II construiu esse modelo de nacionalidade, tentando unificar o país. Ele fez isso silenciando sobre a escravidão e destacando uma natureza idealizada", explica a historiadora.