Uma das cenas mais marcantes da Copa do Mundo de 2014, que foi sediada no Brasil, foi registrada fora de campo. No dia 3 de julho, há exatos 10 anos, o viaduto Batalha dos Guararapes, na avenida Dom Pedro I, região de Venda Nova, desabou. O concreto veio abaixo, amassando um carro e um micro-ônibus da linha suplementar 70. Dois morreram, mais de 20 ficaram feridos, e uma geração passou a questionar a estabilidade de qualquer grande estrutura. Uma década depois, praticamente nada mudou. Mesmo após engenheiros serem condenados, nenhum deles ficou na cadeia, e as indenizações seguem apenas promessas. As famílias das vítimas podem contar nos dedos os dias que não usaram a palavra “Justiça”.

“Tanto para mim, como pelos feridos, pela mãe e pela filha da outra moça que morreu, o que falta é a Justiça, que tinha que ser feita. Querendo ou não, foram retiradas vidas por erros humanos. A gente custa a entender ninguém ser punido”, desabafa Cristilene Pereira Sena, de 42 anos, viúva de Charlys do Nascimento. O pedreiro morreu aos 25 anos nos escombros do viaduto. Ele estava no carro que foi amassado. “Justiça é o que a gente ainda espera. É o mínimo. Se não, ele morreu em vão”, continua a viúva, com a voz firme de quem ainda tem esperança.  

A 11ª Vara Criminal de Belo Horizonte condenou, em dezembro de 2020, cinco engenheiros por crime culposo pela queda do viaduto Guararapes. A sentença, em 1ª instância, prevê penas que variam de 2 anos e 7 meses a 3 anos e 1 mês de prisão, mas ninguém foi preso. A juíza Myrna Monteiro Souto concedeu o direito de substituição da cadeia por pena restritiva de direito, tendo cada um que pagar o valor de 200 salários mínimos (cerca de R$ 282.400) aos dependentes das vítimas que morreram e outros 50 salários mínimos (cerca de R$ 70.600) para cada um dos 23 feridos. Como o processo ainda tramita, as transferências bancárias não ocorreram até então, ou seja, as famílias nunca viram um centavo desse montante.

Conforme o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), um sexto réu, o engenheiro de inicias O.V.C., da empresa de engenharia Cowan, responsável pela obra, foi o único que não teve direito a substituição. Ele foi condenado a 4 anos e 8 meses de prisão porque era responsável por fiscalizar a construção do viaduto e foi avisado dos estalos antes da queda. “Ele deveria ter interrompido o trânsito, evitando assim que vidas fossem ceifadas e lesionadas”, concluiu a magistrada. Mesmo assim, o investigado também não foi preso. “Todas as penas serão cumpridas em regime inicialmente aberto”, afirmou o TJ. 

A única penalização, até o momento, é que os seis condenados – entre diretores, coordenadores técnicos e engenheiros das construtoras Cowan S.A. e Consol Engenheiros Consultores Ltda – foram proibidos de exercer a profissão, por tempo igual ao período de condenação. Além disso, o secretário de Obras e Infraestrutura da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), à época, teve suspenso o direito de exercer cargo público. 

Para as famílias, a sentença não fez diferença, uma vez que as reparações não foram concluídas, nem se tem expectativa de que sejam. “Tudo que se resolve, eles [os réus] entram com recurso e conseguem mais tempo. Eu, com tudo o que aconteceu, não acredito que tenha Justiça. Acho, inclusive, que, se tiver, não estarei mais viva”, lamenta a empresária Analina Soares Santos, de 63 anos, mãe da motorista de ônibus suplementar Hanna Cristina dos Santos. A condutora é a segunda vítima que morreu com a queda do viaduto, aos 24 anos. 

Ministério Público recorreu, mas trâmite continua 

A tentativa mais recente de efetivar uma reparação da tragédia está em processo no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) há quase dois anos. O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) ajuizou uma ação contra um dos engenheiros e cinco herdeiros de outro profissional da Construtora Cowan, responsável pela obra do viaduto Batalha dos Guararapes, conforme o TJMG. O processo pede que os cofres municipais sejam ressarcidos em R$ 30,8 milhões por prejuízos materiais mais R$ 3 milhões por danos morais. “Ainda não há decisão final sobre esses pedidos”, disse o TJMG.

Já sobre as vítimas, o MPMG recorreu da decisão da Justiça, também conforme informado pelo TJMG. O órgão estadual pede que a reparação pelas mortes aumente para o valor de 600 salários mínimos cada – cerca de R$ 847.200. No entanto, a apelação ainda não foi concluída em 2ª Instância. Um outro pedido do Ministério Público de Minas Gerais, de bloqueio de R$ 30 milhões em bens das empresas de engenharia responsáveis, foi cancelado pelo Judiciário, segundo a Cowan informou quando a tragédia completou 8 anos. A empresa informou à reportagem que “não tem medido e não medirá esforços para comprovar sua inocência neste evento”. 

Desamparo 

Com a indenização parada, os familiares das vítimas foram obrigados a lidar com a dor sozinhos. “Eu fiquei sem suporte nenhum. Inclusive, tive que sair da casa em que eu morava, porque era da família dele [o motorista morto]”, conta a viúva Cristilene. A mulher diz que, no mesmo período, ficou desempregada. “Tudo o que passei, foi lutando sozinha, sem suporte de ninguém. Eu e Deus. Não teve reparação, não recebi um real. Apoio psicológico, tive da prefeitura, mas bem no começo, por uns dois meses”, reclama. 

Um amigo de infância do pedreiro Charlys, Marcyano da Silva Resende, de 36 anos, lamenta sentir que só ele e as pessoas próximas ainda carregam sofrimento. “Abandonaram o caso. Se você perguntar para qualquer pessoa sobre quem morreu no acidente, ninguém lembra. O sofrimento ficou para quem é próximo. A Justiça podia ser feita e, de consolo, sair a indenização para os pais e a companheira. Nem o veículo que foi destruído na queda eles pagaram”, lamenta. 

Enquanto nenhum valor de reparação é definido, o vai e vem na Justiça tem efeito contrário: ao invés de despertar esperança, é gatilho para a dor. “Eles [os réus] ficam recorrendo, recorrendo. O que eu queria era ver eles pagando pelo que fizeram. Mas, se não, que isso tudo tivesse um fim. A vontade é acabar com essa tortura. Queria que as autoridades, os juízes, promotores, batessem o martelo que acabasse com isso de uma vez. Ter que reviver toda vez a tragédia, a perda da minha filha, por essa Justiça, é torturante”, crava a mãe da Hanna, Analina. 

Nos arredores do viaduto, ao menos 40 famílias ainda lutam por indenização 

A queda e a implosão do viaduto Batalha dos Guararapes, na avenida Dom Pedro I, deixou mais impacto do que a Justiça parece conseguir registrar. Moradores dos prédios das ruas vizinhas ao trecho onde estava o viaduto estão há uma década tentando ressarcimento pelos danos causados nas moradias e, principalmente, na saúde mental e física. De acordo com a advogada da rede de vizinhos, Ana Cristina Campos Drumond, ao menos 40 processos individuais correm nos tribunais. “Ainda não tivemos nenhuma finalização, em todos esses anos. Os processos tramitam com muito recursos. Gostaríamos de uma proposta de acordo, mas nunca nos foi apresentado nada”, reclama. 

Drumond relata um desgaste após anos de idas e vindas judiciais, com prejuízos de saúde que foram se acumulando nos moradores, cada um à sua maneira. A advogada lembra com pesar das reuniões que o grupo realizava com a prefeitura antes da queda do viaduto, sinalizando que uma fiscalização deveria ser feita. “Fui presidente da associação do bairro e posso afirmar que notificamos a prefeitura sobre o viaduto. De nada adiantou. Quando a construção caiu, até mesmo derrubou um dos muros dos prédios”, relata. 

A expectativa do grupo de moradores é de uma reparação por volta dos R$ 100 mil, mas que ainda está longe de acontecer. “Esse valor acolheria o coração das pessoas. Essa tragédia abalou a vida dos moradores por meses. Durante o período de implosão da estrutura, perderam o direito de ir e vir. Muitos perderam os empregos. Quando voltaram, os apartamentos estavam a puro estilhaço. E o dano moral é pior: uma psicóloga nos atendeu, são relatos de estresse pós-traumático, pessoas que precisaram iniciar medicação para conseguir dormir, crianças traumatizadas com o tremor do prédio”, diz, com emoção nas palavras. 

Avenida Pedro I dez anos após a queda do viaduto Foto: Rodney Costa/O Tempo

Queda do viaduto ensinou o básico, diz especialista

Para o engenheiro especialista em estruturas Ubirajara Camargos, o aprendizado com a queda do viaduto, uma das maiores tragédias em construções da capital, resume-se em respeitar os princípios básicos da construção civil. “Um dos principais estudos sobre acidentes causados pela engenharia são da década de 1970. Depois, um dos maiores nomes da engenharia no Brasil confirmou o mesmo resultado: cerca de 40% dos erros estão nos projetos, outros 40% na obra, erro de execução é minoria. O que aconteceu não foi nenhuma novidade, foi estrutural”, afirma. 

Camargos reforça que, para evitar novas tragédias, o contrato com as empresas de engenharia precisa ser mais rigoroso. Ele explica que o trabalho de revisar os cálculos das obras é crucial, além da fiscalização e manutenção dos viadutos e grandes estruturas. “Isso é outro agravante. Existe uma norma brasileira que obriga que as empresas verifiquem os cálculos. É uma série de descuidos que termina em desastre. Os contratos precisam ser mais rigorosos, e as manutenções periódicas”, acrescenta. 

A PBH informou que, a partir de 2014, ano da queda do Guararapes, iniciou contrato com uma empresa especializada para executar serviços de consultoria de engenharia. Essa companhia avalia a conformidade de projetos de infraestrutura e edificações. “É Importante destacar que a manutenção em viadutos, pontes e passarelas do município é um processo contínuo composto pelas seguintes fases: mapeamento, diagnóstico para avaliar as condições gerais da estrutura e do pavimento dos mesmos e recomendações de intervenções”, garantiu por meio de nota. 

Desde abril de 2020, a Prefeitura de Belo Horizonte vem realizando a manutenção preventiva e corretiva em Obras de Artes Especiais (OAE's). As OAS's incluem pontes, túneis, passarelas e viadutos. “São aproximadamente 420 OAE's em todo o município e, dentre aquelas que necessitam de reparos, mais de  80 manutenções já foram concluídas em viadutos, passarelas, trincheiras, pontes e túneis da capital, aumentando a segurança e a durabilidade dessas estruturas e equipamentos”, disse.