"Nós vamos torturar vocês." Essa é uma das falas de policiais penais dirigidas a detentos do Complexo Penitenciário Nelson Hungria, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. As gravações que mostram as ameaças e as agressões foram feitas em dezembro de 2020 por um agente penitenciário do serviço de inteligência do sistema prisional da Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) e resultou na demissão de dois servidores e no afastamento temporário de outros seis. A gravação foi compartilhada nas redes sociais nos últimos dias. Um documento da Assessoria de Informação e Inteligência Prisional mostra o que os custodiados viviam e corroboram com o estudo da Plataforma Desencarcera, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que demonstrou a violação de direitos em penitenciárias de Minas Gerais.
"Nós vamos torturar vocês." Essa é uma das falas de policiais penais dirigidas a detentos do Complexo Penitenciário Nelson Hungria, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. As gravações que mostram as ameaças e as agressões foram feitas em dezembro de 2020 por um… pic.twitter.com/gJntT6zMUs
— O Tempo (@otempo) January 22, 2025
A tortura praticada na Nelson Hungria vinha de agentes do Grupamento de Intervenção Rápida (GIR). Conforme consta nas 60 páginas do relatório, um policial penal conhecido como "01 do GIR”, “Cara limpa” ou “GIR do mal” era o líder da equipe. Nas gravações ele aparece, ao contrário dos outros, sem o uso de balaclava, que é uma peça que cobre a cabeça, o rosto e, às vezes, o pescoço, deixando apenas os olhos e a boca visíveis. "Fala pra mim de quem é a droga. Abaixa a cabeça. Nós vamos torturar vocês", diz o "01 do GIR" nas imagens que tomaram as redes sociais. Na sequência da gravação, os detentos gritam de dor pelos golpes aplicados pelos agentes da força de segurança.
Um dos detentos relatou que teve lesão nos lábios após ser agredido pelos policiais. "O senhor 'Cara Limpa', depois de conversar com nós, desferiu um soco na minha boca onde cortou a minha gengiva. O GIR nos levou à enfermaria, onde fomos medicados. Na volta, o GIR tomou o nosso remédio. Quando fui colocado na cela, o senhor 'Cara Limpa' fez um enforcamento e eu desmaiei. Depois ele pegou água e jogou em mim onde eu acordei".
O detento informou que a violência teria sido praticada como retaliação por um suposto plano dos custodiados de matar três agentes, algo que, segundo ele, não aconteceu. No documento consta que há indícios de que a direção do complexo penitenciário teve ciência da suposta agressão a esse detento na data de 21 de dezembro de 2020. No arquivo ainda consta que o policial agressor teria dito que o detento ainda estava “devendo” a ele "mais um desmaio".
A ação não teria sido realizada apenas pelo “Cara Limpa”, mas teria tido a participação de outros quatro policiais. Outro detento que estava há nove meses na unidade prisional afirmou que também vinha sendo ameaçado e que foi vítima de agressões. Os relatos foram corroborados pelo de outros que disseram ter presenciado várias agressões contra os custodiados. Os fatos, conforme dito, teriam ocorrido na presença do então diretor de segurança e do coordenador da unidade à época que se omitiram em parar as agressões praticadas pelo grupo GIR.
Outro detento disse que além de já ter sido agredido, também presenciou outros custodiados levando socos e chutes no rosto, golpe de mata-leão, spray de pimenta, desmaios e o rosto dos detentos sendo colocados no vaso sanitário. "O detento teria afirmado que também teria sido vítima de agressões no dia 19/01/2020, no pavilhão 6, no decorrer do procedimento do GIR. Segundo declarou, além de ser desmaiado com golpe 'mata-leão', teriam colocado o 'bico' (cano) da espingarda calibre 12 em seu rosto", diz trecho do documento.
‘Comportamento atípico’
O vice-presidente do Sindicato dos Policiais Penais do Estado de Minas Gerais (Sindppen), Wladmir Dantas, afirma que o fato registrado na Nelson Hungria configura um "desvio de conduta" que não condiz com a realidade. "É um fato praticamente isolado. Graças a Deus nós não vemos isso com frequência e conforme a Sejusp já informou, as medidas já foram tomadas com quem causou todo o dano".
Dantas ressalta que a entidade não compactua com comportamentos agressivos e que junto a categoria eles trabalham para orientar os policiais penais sobre os meios corretos de atuação. "Temos vários códigos e leis que regem a nossa carreira e um deles é o Regulamento de Normas e Procedimentos. Ele nos dá um norte para o que temos que seguir. O servidor com desvio de comportamento será punido com o rigor da lei, mas destaco que esse caso em questão é atípico e isolado", complementa.
Violação nos presídios
Casos como o registrado na Nelson Hungria mostram a realidade do sistema prisional. Dados da Plataforma Desencarcera mostram que no primeiro semestre de 2024, 278 denúncias de violação de direitos foram publicadas. Os números são referentes a 22 unidades prisionais distribuídas em 18 municípios de Minas Gerais.
A unidade prisional com o maior número de denúncias foi a Penitenciária de Três Corações, com 184. Elas representam 66% de todas as denúncias recebidas no período. Em segundo lugar vem a Penitenciária Deputado Expedito Faria Tavares, localizada em Patrocínio, com 23 denúncias.
Quase metade das denúncias foram referentes a violações de direitos dos presos (120). Na sequência, 94 referem-se a violações de direitos de familiares; 42 são sobre torturas contra pessoas presas e 22 foram marcadas como "outras denúncias".
Especialista em segurança pública, Arnaldo Conde afirma que quando uma pessoa fica em privação de liberdade é “dever do Estado prover condições mínimas de sobrevivência”. “Tem que garantir, comida e segurança. Isso não é novidade para ninguém. Não é possível [fatos como os mostrados no vídeo] acontecer. Não tem justificativa para esse tipo de atitude”, disse.
Conde defende ainda melhor preparo aos policiais penais. “É preciso se atentar com a parte técnica e psicológica desses agentes, pois eles lidam com pessoas de alta periculosidade”.
Posicionamento
Procurado por O TEMPO, o Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen-MG) informou que teve conhecimento do relatório e que ele foi encaminhado para providências no âmbito administrativo correcional. “O processo teve o trâmite legal na Corregedoria da Sejusp, sendo concluído todos os expedientes em outubro de 2023, resultando na demissão de dois servidores e suspensão de 90 dias para quatro servidores e, de 15 dias, para outros dois. A decisão foi publicada no Diário Oficial em outubro de 2023”, esclareceu em trecho do posicionamento.
A conduta dos agentes que apareceram nas imagens foi repudiada pela pasta que afirmou que “não compactua com desvios de conduta de seus profissionais”. “Todas as situações de desvio são acompanhadas com rigor, e as medidas administrativas cabíveis são adotadas no âmbito do devido processo legal, resguardando sempre o direito à ampla defesa e ao contraditório”, complementou.
O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) foram procurados para posicionamento, mas não responderam até o fechamento desta matéria.