Em sete dias, o engenheiro civil Rafael Batista Bicalho, de 27 anos, sentará no banco dos réus do Tribunal de Júri, no Fórum  Lafayette, em Belo Horizonte, onde será julgado pelo conselho de sentença — formado por sete cidadãos — por tentar matar o agora médico Henrique Papini, de 30 anos, na saída de uma boate no bairro Olhos d’Água, na região Oeste, no dia 7 de setembro de 2016. No fórum, no entanto, o advogado de defesa, Zanone Júnior, vai defender outra tese. “O que a gente vai mostrar é que houve uma briga, que teve consequências porque as lesões (sofridas por Papini) estão aí. Agora, falar que houve uma premeditação não, o processo não demonstra isso”, argumenta. Em contrapartida, a vítima segue com a certeza de que poderia ter morrido naquele dia: “Este argumento de que Rafael queria apenas praticar lesões corporais já foi analisado pelo Judiciário à luz das provas, e ficou estabelecido que ele teve a intenção de matar, não conseguindo apenas porque outros o impediram”.

As duas declarações devem se enfrentar no tribunal. Diferentemente da conclusão da Polícia Civil e da denúncia do Ministério Público, Zanone descarta que Rafael Bicalho tenha atentado contra a vida do médico. O defensor afirma que Bicalho é réu confesso de uma lesão corporal, e que a gravidade do crime (leve, grave ou gravíssima) é o que deveria ser discutida no júri. Na época da agressão, Henrique Papini foi alvo de socos e chutes do réu, conforme apontou a investigação da Polícia Civil. Ele sofreu hemorragia cerebral, fratura nos ossos da face e traumatismo craniano, resultando em sequelas graves — como paralisia facial, surdez no ouvido esquerdo, perda parcial do olfato e do paladar, além de problemas de visão e equilíbrio. 

Na tentativa de convencer os jurados de que não houve a intenção de matar a vítima, o advogado adiantou alguns argumentos à reportagem. O primeiro tem relação com o registro do crime pela polícia. No boletim de ocorrência, confeccionado horas após a agressão, o crime foi identificado como lesão corporal. “No boletim de ocorrência, que a mãe da vítima fez, eles não falam em tentativa de homicídio. O boletim está registrado como lesão corporal. E o policial ainda falou (escreveu): ‘lesão corporal sem uso de instrumentos contundentes’”, reforçou Zanone. “Quem vai matar alguém, quem tem um plano homicida, não vai se munir de nenhum instrumento? Não havia uma pedra, um pedaço de pau, um instrumento cortante, perfurante, contundente, uma arma de fogo, nada, absolutamente nada”, continuou. Sobre a confecção do documento, Papini disse à reportagem que “o documento foi confeccionado por um policial, e não pela sua mãe, e a interpretação dos fatos nesse momento inicial em nada impede o esclarecimento posterior e a mudança de entendimento”.

A Escala de Coma de Glasgow (ECG) é outra alegação da defesa. Conforme o prontuário do hospital onde Henrique Papini ficou internado — documento anexado no processo —, ele chegou à unidade com a pontuação 13 na ECG, que mede o nível de consciência de um paciente. “No primeiro momento que ele foi internado, ele estava com um Glasgow 13, quase normal. Às 10 horas, já estava com Glasgow 14. Às 11h e pouco da manhã, Glasgow 15. Ou seja, a normalidade. Então, ele entrou com 13, e logo depois foi para 15”. Zanone explica que, para uma pessoa saudável, a pontuação na escala é de 15, classificação que foi alcançada poucas horas após a entrada no hospital. Segundo o defensor, “Papini não correu o risco de morrer”.  Já a vítima, que atua como anestesiologista, declarou que o Glasgow “é mera referência de consciência, não sendo diagnóstico de risco de morte e ou de gravidade do quadro médico".

Para além do estado da vítima e do registro policial, Zanone acentua mais um ponto da investigação que, para a defesa, demonstra que não houve a intenção de assassinato. Após a agressão, os telefones de Rafael Bicalho e dos amigos que o acompanhavam naquela noite, inclusive o da mulher que teria sido o pivô do desentendimento, foram apreendidos pela Polícia Civil. No entanto, ficou constatado que não houve troca de mensagens no sentido de premeditar um crime contra a vítima. “Não há uma conversa, um acordo pretérito (anterior à agressão) no sentido de: vamos para boate, pegar o Henrique”, disse. O pretexto não é válido para Papini, que afirma ter sido ameaçado por Bicalho mais de uma vez antes do dia da agressão. “As sequelas permanentes estão sempre me lembrando da crueldade e da covardia da atitude dele naquele dia”, acrescentou. 

Arrependimento e ansiedade

À medida que o julgamento se aproxima, a ansiedade toma conta do réu Rafael Bicalho e de sua família. O porta-voz Zanone Júnior revelou à reportagem que “ele está ansioso e triste”. O réu chegou a confidenciar para o advogado que, se pudesse, “apertaria a mão do Henrique e pediria desculpas”. Nos quase nove anos que separam a agressão do julgamento, Bicalho teve dificuldades em seguir sua vida e até atrasou o início da carreira como engenheiro civil.

O que diz Henrique Papini na íntegra? 

“Este argumento de que Rafael queria apenas praticar lesões corporais já foi apreciado pelo Judiciário à luz das provas, e ficou estabelecido que ele teve a intenção de matar, não conseguindo apenas porque foi impedido por terceiros. É fato que Rafael já havia me seguido e ameaçado, deixando clara a sua intenção violenta. Suas atitudes e as consequências da agressão falam por si.

Sobre o boletim de ocorrência, ele foi confeccionado por um policial, e não pela minha mãe. A interpretação dos fatos nesse momento inicial em nada impede o esclarecimento posterior e a mudança de entendimento.

O Glasgow é uma mera referência ao nível de consciência, não sendo um diagnóstico de risco de morte ou de gravidade do quadro médico.

Assim, entendo que a violência das agressões que sofri deixa claro que Rafael queria, sim, me matar naquele dia, e as sequelas permanentes estão sempre me lembrando da crueldade e covardia da atitude dele.”

Relembre o caso 

Henrique Papini foi agredido ao deixar a boate Hangar 677, no bairro Olhos D’Água, na região do Barreiro, em BH, no dia 7 de setembro de 2016. Segundo o inquérito da Polícia Civil, a motivação foi o ciúme, visto que a vítima teria ficado com a ex-namorada do suspeito. Bicalho, inclusive, teria ameaçado Papini anteriormente por conta do relacionamento.

Durante as investigações, que duraram pouco mais de dois meses, 12 pessoas foram ouvidas, entre testemunhas, suspeitos e a própria vítima. Inicialmente, havia quatro envolvidos, mas Hélio Alberto Borja Brum, 19, e Felipe Alvim Gaisler, 18, não foram responsabilizados. Além do indiciamento de Rafael Batista Bicalho, 19, por tentativa de homicídio, Thiago Motta Vaz Rodrigues, 20, foi indiciado por lesão corporal.

A gravidade do estado de saúde de Papini foi um dos fatores que levaram ao indiciamento de Bicalho por tentativa de homicídio. O inquérito da PCMG também indicou motivo fútil — registrado como ciúmes da ex-namorada — e a impossibilidade de defesa da vítima, que foi surpreendida e chegou a ficar inconsciente, segundo a investigação.