Em três anos de espera por uma cirurgia, Marilda de Fátima Correa, de 47 anos, perdeu o emprego, a mobilidade e a independência. Ela é uma das 29 mil pessoas que aguardam uma cirurgia eletiva na rede SUS de Belo Horizonte. A meta do governo de Minas é “zerar” a fila em todo o Estado até 2028, apostando na descentralização dos atendimentos e na abertura de hospitais regionais com vocação cirúrgica. Especialista em gestão de saúde acrescenta que também é preciso investir nos hospitais já abertos. A principal barreira está na alta pressão dos atendimentos de urgência, que sobrecarregam especialidades como a ortopedia — justamente a de maior demanda.

Para Marilda, a espera já está longa demais. Ela precisa de uma prótese de cerâmica, recomendada devido a um desgaste nos quadris causado pela anemia falciforme. “Fui diagnosticada em 2021. Na época, ainda trabalhava sentindo dor, mas, em 2022, não aguentei mais. Agora o desgaste está grande, não consigo andar nem trabalhar. Os médicos dizem que preciso da prótese, mas o Estado nega. Perdi o emprego, o INSS me liberou umas três vezes, mas cortou o benefício. Dependo da minha mãe e da minha irmã”, relata.

A espera pela cirurgia é “terrível para os pacientes”, destaca o especialista em vigilância em saúde, Alan Rodrigo. “Muitas vezes, eles ficam acamados e acabam desenvolvendo outras complicações devido à fratura inicial. Em alguns casos, quando a cirurgia é finalmente marcada, o paciente já está com um quadro de infecção que não existia antes — o que pode até impedir a realização do procedimento”, explica.

O secretário de Estado de Saúde de Minas Gerais, Fábio Baccheretti, avalia que a redução da fila por cirurgias eletivas esbarra em um gargalo: a sobrecarga dos atendimentos de urgência e emergência. Acidentes de trânsito e quedas, por exemplo, ocupam leitos e equipes que poderiam estar disponíveis para procedimentos agendados. Conforme Baccheretti, “os grandes municípios acabam estrangulados pela urgência”, o que limita a capacidade de avançar na fila eletiva.

Em Belo Horizonte, esse impacto ficou evidente no início deste ano. Entre 22 de janeiro e 5 de fevereiro, a prefeitura precisou suspender temporariamente as cirurgias ortopédicas eletivas. “Foi um contingenciamento de 14 dias porque estávamos com uma demanda muito alta na porta, principalmente por acidentes e quedas. Mas a situação já foi normalizada”, explica a subsecretária de Atenção à Saúde, Raquel Felisardo.

O enfrentamento desse gargalo, no entanto, exige medidas que vão além da gestão hospitalar. “É preciso reduzir os acidentes de moto, de carro, que geram fraturas e deixam pessoas totalmente ou parcialmente inválidas, tirando delas a chance de continuar trabalhando e vivendo uma vida normal”, defende Baccheretti.

Além dos traumas, outro fator que acende o sinal de alerta são os surtos de doenças que pressionam os leitos de terapia intensiva. Neste ano, Minas Gerais decretou situação de emergência devido aos casos de Síndromes Respiratórias Agudas Graves (SRAGs). “O grande ponto é que a síndrome respiratória é muito forte em crianças nessa época. Nós estamos agora, provavelmente, no pico, e, nas próximas semanas, já deve começar a cair”, afirma Baccheretti.

De acordo com o secretário, nenhuma cidade mineira precisou, até o momento, suspender cirurgias eletivas em 2025 por conta das SRAGs. “Se algum município perceber uma concorrência real entre leitos de CTI para cirurgia eletiva e leitos para pacientes graves de síndrome respiratória, a nossa opção sempre será priorizar a urgência e emergência. Mas isso, se acontecer, será de forma muito pontual, nada sistemático”, pontua.

A meta é zerar a fila

Fábio Baccheretti garante que a meta do Estado é que o paciente diagnosticado com uma doença cirúrgica consiga realizar o procedimento em, no máximo, 30 a 60 dias. “Fila zerada significa que os pacientes terão acesso rápido à cirurgia, como acontece no setor privado. Isso já é realidade em diversas regiões de Minas. E, à medida que conseguirmos resolver a demanda regional, essas regiões passam a ajudar outras”, afirma Baccheretti.

A estimativa de Baccheretti é que a mudança comece a ganhar corpo já no curto prazo. “Se eu pudesse chutar, diria que até o fim do ano que vem (2026) boa parte do Estado já estará nessa nova realidade. E em dois ou três anos, teremos todo o território mineiro operando nesse ritmo. É uma política que veio para ficar”, garante.

Para o médico Alan Rodrigo, a projeção é “muito otimista”. Ainda assim, ele concorda que é possível “criar um ponto de equilíbrio, reduzindo a pressão atual”. “Hoje, a fila é extensa e diversa. Mesmo com a construção de novos hospitais, o problema vai continuar: as cirurgias eletivas vão disputar espaço com os atendimentos de urgência”, ressaltou.

A grande aposta do governo de Minas é o programa Opera Mais, iniciativa criada em 2021 para mobilizar recursos para realização de cirurgias eletivas. Conforme dados do programa, foram realizadas 969.559 cirurgias eletivas em Minas Gerais em 2024, crescimento de 17,8% em relação ao ano anterior, que registrou 822.955 procedimentos. Para 2025, a projeção do governo é superar 1 milhão de cirurgias.

Enquanto isso, Luiz Henrique dos Santos, de 51 anos, espera por uma cirurgia no quadril. Diagnosticado em 2023 com desgaste nos quadris, ele afirma que a dor limita quase completamente sua rotina. “Minha mobilidade está reduzida em 90%. Sofro para tomar banho, ir ao banheiro, fazer qualquer movimento. O chão virou uma distância muito grande. Se um objeto cai, eu não consigo pegar. Eu era pedreiro, mas tive que parar. Hoje sou aposentado por invalidez, mas queria ser mais útil para minha família”, desabafa.

Descentralização

Das 29 mil pessoas que aguardam por uma cirurgia em BH, 36% são de outros municípios mineiros que possuem pactuação com a capital. O restante vive na própria cidade. Para desafogar a fila, o governo pretende descentralizar os atendimentos e expandir a oferta no interior. O Hospital Regional de Teófilo Otoni, por exemplo, terá 432 leitos. Em Divinópolis, serão 220. “Essas regiões têm vocação cirúrgica e grande demanda reprimida. A descentralização vai permitir que cirurgias como hérnia e histerectomia sejam feitas perto da casa do paciente”, reforça o secretário.

Em meio aos debates sobre aumento das cirurgias eletivas, um dos principais hospitais para realização de cirurgias ortopédicas está no meio de um imbróglio jurídico. O impasse gira em torno da proposta do governo de repassar parte da estrutura do Hospital Maria Amélia Lins à iniciativa privada, por meio do programa Opera Mais. Desde dezembro de 2024, o centro cirúrgico do hospital está fechado.

A iniciativa tem sido criticada por entidades de saúde e pelo Ministério Público, que alertam para uma possível estratégia de esvaziamento da unidade pública. Os servidores da unidade foram transferidos para o Hospital João XXIII. Baccheretti garante que a medida não causou impacto para a saúde pública.

Cansados de esperar

Enquanto o governo projeta zerar a fila de cirurgias eletivas até 2028 e o agendamento de cirurgias eletivas esbarra na pressão dos atendimentos de urgência, milhares de pessoas ainda convivem com a dor e a incerteza. Para alguns, como Marilda e Luiz, citados no início da reportagem, a espera foi longa demais — e o caminho acabou sendo a judicialização.

Com o apoio do Instituto Mateus, que oferece assistência jurídica gratuita, eles entraram na Justiça em busca do procedimento pelo qual aguardam há anos. “Eles cansaram de esperar. Sofrem com dores e não aguentam mais. A judicialização passou a ser uma alternativa para garantir um direito que está na Constituição”, afirma a advogada Valéria Souza, diretora jurídica do instituto.

Entre janeiro de 2023 e março de 2025, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) registrou 575 processos relacionados a cirurgias na Comarca de Belo Horizonte. Sessenta e cinco deles foram abertos apenas nos três primeiros meses deste ano — números que mostram que, apesar das metas futuras, a fila ainda pesa no presente.

Procurada, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) informou, por meio de nota, que “está em tratativas, empreendendo todos os esforços para viabilizar o atendimento aos pacientes mencionados, conforme as possibilidades legais e operacionais do sistema público de saúde, reforçando seu compromisso com o cumprimento das decisões judiciais e com a transparência nas ações adotadas”.

Em relação à paciente Marilda de Fátima Correa, a pasta afirmou que “já está adotando as medidas necessárias para o cumprimento da decisão judicial, por meio de depósito judicial destinado à realização do procedimento cirúrgico”.

Sobre Luiz Henrique dos Santos, a secretaria explicou que “o caso encontra-se em fase de análise técnica e jurídica, com avaliação da documentação apresentada e dos termos do recurso interposto”.

A SES-MG também reiterou seu compromisso com a ampliação do acesso às cirurgias eletivas em Minas Gerais e informou que “alcançou a marca de 1 milhão de procedimentos realizados somente em 2024”.