A qualidade das calçadas está longe do ideal nas áreas urbanas brasileiras. Buracos, obstáculos e construções irregulares ameaçam a segurança do cidadão. É o que mostram os resultados da Pesquisa Urbanística do Entorno dos Domicílios, feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base no Censo de 2022. O estudo foi divulgado em abril deste ano.

Embora 84% da população que vive em cidades (cerca de 146,4 milhões de pessoas - veja abaixo) tenha passeios em sua rua, somente 15% dela (26,4 milhões de pessoas) reside em localidades com rampas de acesso para cadeiras de rodas; e apenas 18,8% (32,7 milhões de pessoas) mora em vias cujas calçadas são livres de impedimentos, como desníveis, rachaduras e lixeiras ou árvores mal posicionadas.

Cenário urbano brasileiro - Censo 2022
Ruas com calçada | 146.380.867 (84%)
Calçada com rampa para cadeirante | 26.475.698 (15,2%)
Calçada sem obstáculos | 32.799.617 (18,8%)

Moradores com calçada - 2010 | 2022
BR: 146.380.867 | 102.027.318
MG: 12.430.449 | 16.186.504
BH: 2.102.643 | 2.111.567

Moradores sem calçada - 2010 | 2022
BR: 56.943.433 | 27.349.528
MG: 3.923.334 | 1.718.114
BH: 154.366 | 189.801

Territórios com mais calçadas
1º: Distrito Federal (92,9%)
2º: Goiás (92,6%)
3º: São Paulo (91,6%)
4º: Minas Gerais (90,3%) *DESTACAR*

Piores
Amapá (57,1%)
Roraima (60,3%)

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estudo feito em setores censitários selecionados para a Pesquisa Urbanística do Entorno dos Domicílios. Ou seja, não foi realizada em TODOS os domicílios brasileiros.

Mais 70 anos

Mesmo que problemas como passeios quebrados ou com pisos escorregadios sejam preocupantes para todos, é a Pessoa com Deficiência (PCD) quem mais sofre. A falta de uma rampa de acesso para cadeirantes, por exemplo, impede o mínimo de segurança de deslocamento para esse cidadão. De acordo com Jaison Cervi, geógrafo da Coordenadoria de Geografia do IBGE e responsável pelo estudo urbanístico, no ritmo atual de implantação de rampas nas calçadas, o Brasil levará cerca de sete décadas para atender à necessidade da atualidade.

"Considerando que em 12 anos (entre os Censos de 2010 e 2022) houve acréscimo em mais 20 milhões de pessoas residindo em domicílios em cuja calçada ou passeio havia rampa para cadeirantes, levaríamos aproximadamente 70 anos para que a totalidade da população tivesse acesso a este importante equipamento urbano, mantido o ritmo de crescimento da oferta e as variáveis demográficas", disse o especialista.

Entre os problemas que atrapalham a qualidade de uma calçada, estão:

- Buracos e desníveis;
- Ausência de faixa tátil para pessoas com deficiência visual
- Rachaduras e piso escorregadio ou quebrado por razões diversas, incluindo raízes de árvores expostas;
- Postes de luz mal posicionados;
- Lixeiras, caçambas, bancos, etc, mal localizados ou mal instalados;
- Entulho ou itens abandonados;
- Degraus ou rampas sem padrão;
- Falta de largura adequada para passagem;
- Publicidade ou placas que obstruem o caminho.

No Brasil, as calçadas devem ter acessibilidade, conforme é regulamentado pela Lei nº 10.098/2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para esse fim para Pessoas com Deficiência (PCD) ou com mobilidade reduzida. Em complemento, a norma ABNT NBR 9050 também estabelece critérios para a acessibilidade em calçadas, incluindo largura mínima de faixa livre para circulação de pedestres, pisos antiderrapantes, ausência de desníveis e obstáculos, entre outros. 

Experiência própria

O aposentado Leonardo José de Mattos (foto abaixo), de 69 anos, tornou-se cadeirante em 1978, após um acidente de carro. Ele é presidente da Associação Mais Acessível (AMA), entidade criada em 1982 para defender os direitos das pessoas com deficiência. Segundo ele, entre 0 e 10, sendo 0 a pior nota e 10 a melhor, a capital mineira receberia nota 1 em acessibilidade.

Um dos principais motivos para uma avaliação tão ruim é, justamente, a qualidade das calçadas. "Já caí mais de mil vezes por causa de calçada irregular. É uma realidade de quebrar cadeira, quebrar eixo, que joga o cadeirante no chão. Então, se sai à rua, vai precisar de ajuda de terceiros. Isso prejudica a autonomia da PCD", afirmou Leonardo.

Na foto, Leonardo José de Mattos. Crédito: João Godinho/O Tempo

Para minimizar os problemas, a AMA sugere que o poder público municipal assuma a responsabilidade pela padronização das calçadas. Na atualidade, é o dono do imóvel quem tem, por lei, que construir e manter o passeio em bom estado. Em BH, essa determinação faz parte do Código de Posturas do Município (Lei 8.616/2003).

"Qualquer cadeirante sofre muito nessa cidade (BH). A gente atua para tentar convencer a prefeitura a cuidar do passeio, pois o proprietário da casa, muitas vezes, é instável. Um vizinho tem dinheiro e boa vontade para fazer a calçada corretamente, já o outro, não, resultando em um passeio irregular", declarou. A reportagem procurou a PBH para entender se há chances de que as calçadas sejam assumidas pelo Executivo, mas não havia obtido retorno até a publicação desta matéria. 

O também aposentado Felicíssimo Batista Neto, de 65 anos, perdeu completamente a visão há 18 anos, devido a um quadro de glaucoma associado a diabetes. Ele diz que consegue andar sozinho em BH, mas assume que isso é um risco à própria integridade.

"Setenta por cento das calçadas de BH são uma armadilha para cegos e cadeirantes. Principalmente aqueles riscos no chão: se você seguir aquilo, você cai no meio da rua, entra no meio dos carros, bate em muro. Então, é preciso ficar atento ao barulho dos carros ao invés de seguir (o piso tátil)", disse. Felicíssimo também reclama da falta de cuidado de moradores com suas calçadas. "As pessoas têm que se preocupar com os deficientes e arrumar os passeios. Mas eles não arrumam e não há ninguém que fiscalize (as irregularidades)", completou.

Problema multifatorial

Para Sandra Nogueira, professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), e doutora em Planejamento Urbano e Regional, a questão da melhoria das calçadas no Brasil é complexa e vai muito além da responsabilização do proprietário do imóvel. Segundo ela, historicamente, as cidades brasileiras foram pensadas e construídas sem priorizar a mobilidade do pedestre.

"Foi privilegiado o veículo motorizado, resultando em espaços públicos fragmentados e inseguros para circulação a pé. Além disso, as calçadas vêm sendo cada vez mais disputadas por usos diversos, como comércio informal, mobiliário urbano, placas e equipamentos que, embora tragam vitalidade aos espaços públicos, também limitam e dificultam o deslocamento seguro e confortável das pessoas, especialmente aquelas com mobilidade reduzida ou deficiência", afirmou.

Para tornar o tema ainda mais complexo, ela completa que a fiscalização sobre irregularidades é insuficiente, somada a uma população que ainda não entende completamente a importância do respeito à acessibilidade e do direito do uso compartilhado à cidade. "Fatores que, juntos, explicam o cenário atual apontado pelo Censo", disse. Para solucionar o desafio, a especialista propõe que a discussão seja um processo contínuo e colaborativo entre poder público e cidadãos.

"Isso inclui uma revisão crítica da legislação urbanística, mas também a criação de espaços de diálogo e parcerias comunitárias. É fundamental investir em educação cidadã que estimule o respeito à acessibilidade e à inclusão, reforçando o compromisso com os direitos de todas as pessoas que vivem e circulam pela cidade. Uma mudança real só acontecerá com uma gestão pública responsável e cidadãos conscientes do seu papel em garantir uma cidade acessível, segura e verdadeiramente democrática para todos", encerrou.

Alysson Coimbra, diretor da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego, também propõe que a solução vá além da responsabilização individual. Segundo ele, é fundamental pensar em uma relação entre cidadão e poder público, com alternativas que podem ser implementadas pelas prefeituras, incluindo incentivo fiscal, com redução no valor do IPTU para imóveis que mantêm suas calçadas em boas condições; programas de cooperação entre prefeitura e moradores para divisão de responsabilidades; multas e notificações educativas, mas com um caráter pedagógico antes de punitivo; e projetos de calçadas padronizadas, em que a prefeitura oferece materiais ou mão de obra subsidiada, especialmente em áreas de maior vulnerabilidade.

"A solução passa por transformar o cuidado com a calçada em um tema coletivo, e não apenas uma obrigação individual. Quando o poder público, os moradores e os comerciantes trabalham juntos, a cidade toda se beneficia: menos acidentes, mais mobilidade, mais saúde e um ambiente urbano mais humano", declarou Coimbra.

Questão de saúde

O diretor da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego ainda lembra que as calçadas irregulares ou em más condições representam risco à segurança de todos, especialmente aqueles com mobilidade reduzida, idosos, gestantes e crianças, que são mais vulneráveis a desequilíbrios e quedas. "Irregularidades como desníveis, buracos, rachaduras e má conservação podem levar a quedas que resultam em lesões ortopédicas, como entorses, fraturas de tornozelo e pé, e, em casos mais graves, traumatismos cranianos", explicou.

Além disso, Coimbra afirma que a falta de manutenção das calçadas pode obrigar os pedestres a utilizarem a pista de rolamento, aumentando o risco de atropelamentos e outros acidentes de trânsito, o que, segundo ele, sobrecarrega o sistema de saúde pública com atendimentos de emergência, cirurgias e reabilitações. Os passeios irregulares ainda contribuem para a redução da mobilidade urbana, "desestimulando o uso de meios de transporte ativos e sustentáveis, como caminhar e andar de bicicleta".

"Do ponto de vista da mobilidade urbana, calçadas acessíveis e seguras incentivam o deslocamento a pé, promovendo a mobilidade ativa. Isso contribui para a redução do sedentarismo, melhora a qualidade de vida da população e reduz a dependência de veículos motorizados, diminuindo o trânsito e as emissões de poluentes", disse o especialista.

Regras do passeio

Conforme previsto no Código de Posturas do Município (Lei 8.616/2003), o proprietário do imóvel deve construir, manter e conservar o passeio em bom estado. Em regra geral, os passeios precisam ter uma faixa reservada ao trânsito de pedestres e outra destinada ao mobiliário urbano (árvores, lixeiras, etc).

"Precisam ter superfície regular, contínua, firme e antiderrapante, executados sem mudanças abruptas de nível ou inclinações que dificultem a circulação dos pedestres", esclareceu Raquel Guimarães, diretora de Planejamento da Fiscalização da Prefeitura de Belo Horizonte. 

As regras exatas, com medidas e orientações, estão disponíveis no portal da prefeitura.

Além disso, em caso de dúvidas sobre como executar a obra do passeio, o cidadão pode solicitar ajuda, de forma remota, no Plantão On-line de Orientações sobre Edificação, no portal da prefeitura. Segundo a PBH, as senhas são liberadas no sistema de agendamento de segunda a sexta-feira, às oito horas da manhã. O agendamento deve ser feito aqui.

Denúncia e multa

Em BH, o cidadão pode denunciar calçadas irregulares ou em mal estado de conservação diretamente à prefeitura. Para tanto, pode usar o telefone 156, o aplicativo PBH App ou ir até o BH Resolve (avenida Santos Dumont, 363, Centro). A reportagem procurou a PBH e pediu números referentes às ações fiscalizatórias feitas nos últimos anos, e aguarda retorno.

Em caso de irregularidade comprovada, o dono do imóvel pode ser multado. Em primeiro lugar, geralmente, o fiscal dá um prazo em dias para a solução do problema. Se ele não for resolvido, vêm as multas, que podem variar entre R$ 704,56 (para casos em que o proprietário reveste o passeio em desacordo com a norma) e R$ 3.522,90 (quando o responsável deixa de recompor passeio após a execução de obra ou serviço).