O luto é lembrança diária para Keyfane Araujo, de 32 anos. Em fevereiro deste ano, ela perdeu a mãe, vítima de um acidente de moto na avenida Nossa Senhora do Carmo, no Sion, região Centro-Sul de Belo Horizonte. Romilda estava na garupa de uma moto, durante uma corrida por aplicativo, quando o veículo bateu na traseira de um carro. Ela caiu debaixo de um ônibus e não resistiu. “A saudade dói. Perdi o que nunca mais vou ter na vida”, desabafa a filha. Além da perda familiar, o caso entra para a estatística de aumento do número de acidentes com veículos sob duas rodas na capital mineira. O crescimento ocorre em meio ao uso do transporte por aplicativo de moto, que, apesar de amplamente usado, ainda carece de regulamentação.
Em seis anos, o número de acidentes de moto em Belo Horizonte aumentou 56,18%, conforme dados do Painel de Acidentes de Trânsito da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). Saltou de 13.158 em 2018 para 20.551 em 2024. Ou seja, uma média de dois casos a cada hora. Os números vêm numa crescente, com exceção de 2020, primeiro ano da pandemia, quando houve ligeira queda. No entanto, o crescimento voltou a ser expressivo a partir de 2021. No fim daquele ano, a Uber iniciou o serviço de transporte por moto de passageiros na capital mineira.
Passados quase quatro anos, o serviço de mototáxi em Belo Horizonte ainda carece de regulamentação. Na visão do professor Leandro Duarte, mestre em geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apesar de não haver dados sobre o número de acidentes durante viagens por aplicativos, é possível inferir que o crescimento do serviço esteja relacionado ao transporte — e as outras práticas, como o serviço de entrega. “Por ser um assunto recente, temos uma insuficiência de dados”, afirma.
Para além da falta de regulamentação, Romilda Alves de Araújo, de 53 anos, tinha resistência ao uso de moto. “Minha mãe tinha muito medo. Inclusive, sempre xingava a gente”, contou a filha, Keyfane Araujo. Segundo ela, no dia do acidente, Romilda recorreu ao transporte por aplicativo para ganhar tempo após sair do trabalho. Ela iria buscar um vestido que usaria no próprio aniversário, que seria comemorado dias depois, em um sítio. A festa já estava toda paga e organizada. “Ela era uma pessoa muito querida. Uma leoa, brava. Não gostava que ninguém fizesse nada com os filhos dela”, completou a filha. Romilda deixou cinco filhos, seis netos e um bisneto.
Flavio Tavares / O TEMPO
O acidente que matou Romilda expõe um problema relacionado à lógica dos aplicativos, cujo uso depende do celular. Foi justamente o uso do aparelho que causou a batida que resultou na morte dela. Em depoimento à polícia, o motociclista envolvido no acidente contou que, segundos antes da colisão, desviou a atenção para o celular, onde consultava o aplicativo de mapa. Ao retornar o olhar para a via, já estava muito próximo da traseira do carro à frente e não conseguiu frear a tempo.
Acidentes sobrecarregam sistema de saúde
Os acidentes de moto têm impactado a saúde pública, ressalta a Prefeitura de Belo Horizonte. O município informa que, entre 22 de janeiro e 5 de fevereiro deste ano, a rede SUS-BH entrou em contingenciamento dos procedimentos ortopédicos, com suspensão de cirurgias eletivas. Isso porque o aumento da demanda de cirurgias de urgência, “a maioria vinda de pacientes envolvidos em acidentes de trânsito”, gerou um esgotamento da capacidade de atendimento.
Dados do Hospital Pronto-Socorro João XXIII evidenciam o aumento no atendimento a vítimas de acidentes de moto. Entre 2020 e 2025, o número saltou de 5.515 para 7.227 casos. O médico Romulo Souki é cirurgião na unidade de saúde. Segundo ele, fraturas são os traumas mais comuns associados às ocorrências. “E a velocidade está relacionada à gravidade dos traumas”, acrescenta. Ele destaca que o uso de equipamentos de segurança é fator decisivo para minimizar os impactos no caso de acidentes.
Profissão de risco. Para quem precisa se aventurar diariamente nas ruas de Belo Horizonte, o sentimento é de insegurança. “O trânsito está cada dia mais caótico, com motoristas sem paciência”, afirma o motociclista Wesley Batista, de 22 anos. Ele começou a trabalhar no aplicativo em 2023 e, desde então, aguarda por uma regulamentação que traga amparo para os profissionais, mas não inviabilize as plataformas. “Bem ou mal, é a nossa fonte de renda. Não dá para fazerem algo que nos tire do mercado”, diz.
Na visão dele, a regulamentação também deveria restringir os passageiros quanto à vestimenta. Além disso, as plataformas deveriam disponibilizar orientações, ainda que básicas, sobre como andar na garupa de uma moto. “Pegamos muitas pessoas que nunca andaram de moto na vida. Isso acaba até nos colocando em risco. Tem gente que anda de short. Se acontece um acidente, essa pessoa está muito exposta”, analisa.
Sem regulamentação, plataformas se amparam em legislação federal
Para operarem no Brasil, as empresas se amparam na lei federal da Política Nacional de Mobilidade Urbana, alterada por normativa em 2018. A legislação trata do transporte remunerado privado de passageiros por aplicativo e estabelece aos municípios a competência de regulamentar e fiscalizar os serviços. Na visão do professor Leandro Duarte, os quase quatro anos de operação do serviço sem regulamentação criaram um “descompasso”, que garantiu controle às plataformas. “Elas se inseriram na sociedade, já fazem parte do cotidiano das pessoas. Então, a regulamentação já deveria ter sido feita”, analisa.
Ainda que de maneira tardia, a regulamentação pode estar próxima de ocorrer. Tramita, na Câmara de Belo Horizonte, um projeto de lei, de autoria do vereador Pablo Almeida (PL), que define regras para as operadoras dos aplicativos e prevê seguro de acidentes pessoais e uso de equipamentos de proteção. O texto já foi aprovado em primeiro turno, em junho deste ano, e aguarda apreciação em segundo, para seguir para sanção ou veto do prefeito Álvaro Damião (União Brasil).
O projeto exige, entre outros pontos, que os aplicativos tenham um sistema para monitorar a velocidade e rastrear as corridas em tempo real. Também determina que os motoristas sejam fiscalizados para seguir as regras de segurança. Além disso, as plataformas devem oferecer treinamentos regulares sobre trânsito e responsabilidade no transporte de passageiros.
Essa tentativa de regulamentação, no entanto, enfrenta ressalvas de entidade ligada aos profissionais. Na análise do presidente da Associação dos Prestadores de Serviço que Utilizam Plataformas Web e Aplicativos de Economia Compartilhada (Appec), Warlei Leite, a proposta possui pontos de inconstitucionalidade, que acabam punindo o motociclista. “O projeto é difícil de ser cumprido. Dessa forma, nós apresentamos o nosso substitutivo. Vamos ver como vai funcionar isso”, ressalta.
Leite explica que a Appec apresentou, à Câmara Municipal, um texto substitutivo, elaborado junto ao vereador Bruno Pedralva (PT). “Estamos engajados em auxiliar na regulamentação”, reforça. Ele também opina que a elevação dos acidentes esteja relacionada “à entrada de novos condutores nas plataformas”.
A reportagem questionou a Uber sobre as ações que a plataforma adota visando promover segurança no trânsito e como ela tem participado das discussões sobre a regulamentação na capital mineira, mas a empresa disse que, como não foram citados casos específicos associados à Uber, não irá se manifestar.
Já a 99 afirmou que "adota uma estratégia multifacetada para promover a segurança no trânsito, com mais de 50 recursos tecnológicos, que incluem controle de velocidade, telemetria das viagens, bloqueio de motociclistas que dirigem perigosamente e conscientização de condutores". Conforme a empresa, a taxa de acidentes foi de 0,0003% das corridas em 2024.
Além disso, declarou que está "acompanhando as discussões sobre o projeto e está aberta a negociar com o governo". A empresa informou que, desde o lançamento em 2022, o serviço gerenciou mais de 1 bilhão de viagens em cerca de 3.300 cidades brasileiras.