Nascida e criada no Vale do Jatobá, na região do Barreiro, a vendedora Flávia Cássia, de 42 anos, que sonha em se tornar eletricista, foi uma das oito pessoas selecionadas para participar da primeira edição do Passeio Turístico Barreiro, realizado neste sábado (2/8) em celebração aos 170 anos do território. A proposta da iniciativa é apresentar aspectos históricos, culturais e artísticos da região por meio de visitas guiadas a cinco pontos de destaque: o Santuário São Paulo da Cruz, a Praça do Cristo, o Parque das Águas, o Viaduto das Artes e o espaço cultural Quinta Arte.

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Mais antiga que a própria cidade de Belo Horizonte, a região do Barreiro é formada por 54 bairros e 18 vilas, abrigando mais de 300 mil habitantes. São tantos que, se fosse um município, estaria entre os oito mais populosos de Minas Gerais.

Curiosamente, o artista e produtor Mauro Satter, que estruturou o roteiro, conta que a ideia inicial era restringir o passeio a visitantes de outras regiões da cidade. Mas a demanda foi outra. “Foi tanta procura de barreirense que a gente entendeu que o desejo de redescobrir o território era urgente. O Barreiro é muito rico em história, em arte, em religiosidade, mas muita gente que vive aqui nunca teve a chance de se aproximar desses marcos”, conta, admitindo que casos como o de Flávia fizeram o projeto se abrir também a moradores da própria região.

Para ela, a motivação ao se inscrever era clara: preservar um certo olhar de turista e de encantamento sobre o lugar onde nasceu e vive. “A gente viaja e acha tudo tão lindo e, às vezes, tem essa beleza toda bem na nossa frente, mas não vemos”, provoca. Essa inquietação, uma tentativa constante de não se deixar anestesiar pela paisagem cotidiana, se manifestava a cada parada do trajeto. No grupo inaugural – que reuniu participantes de diversas regiões de BH –, Flávia foi uma das mais curiosas e engajadas.

Na primeira parada, no Santuário São Paulo da Cruz, se pôs a ouvir atenta às explicações do padre Alex Antônio Favaro sobre detalhes e histórias do templo, que está entre os cinco mais movimentados da região metropolitana de BH e originou  mais de 30 paróquias locais desde sua construção após a chegada, em 1954, dos padres passionistas, vindos da Itália com a missão de evangelizar os trabalhadores da recém-instalada siderúrgica Mannesmann – empresa decisiva para o desenvolvimento urbano do território.

Fred Magno / O TEMPO

O santuário, destaca o padre, chama atenção por seus traços arquitetônicos, que incluem formas laterais que remetem aos foles de uma sanfona – em homenagem ao padre Alfredo, um dos idealizadores do projeto e músico amador – e a fachada externa evoca o estilo modernista de Oscar Niemeyer, lembrando a famosa igrejinha da Pampulha. “É a materialização de um tempo histórico”, comenta o sacerdote.

Entre as relíquias guardadas no templo estão fragmentos ósseos de São Paulo da Cruz, fundador da ordem passionista. Outro destaque é o órgão eletrônico italiano, um dos únicos três exemplares desse modelo em funcionamento no país, utilizado em concertos de Natal e Páscoa. Mas foi um objeto aparentemente simples que mais tocou Flávia: o solideu do Papa Francisco, entregue pessoalmente ao padre Alex em uma visita ao Vaticano. Ela também vibrou com o som dos sinos – quatro foram doados no ano anterior, o mais pesado com 310 quilos, o mais leve com a metade desse peso.

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Mais que ouvinte, porém, Flávia se revelou uma guardiã de memórias locais. Sua própria história, combinada com relatos de uma tia de 72 anos, ajuda a reconstituir capítulos pouco documentados da região, como as festas de Nossa Senhora do Rosário. Além de uma foto de 1933, que mostra a celebração em frente à antiga capela da Santa, restam apenas as lembranças orais sobre as procissões que saíam do Vale do Jatobá rumo ao local onde hoje está o santuário.

A segunda parada do roteiro foi a Praça do Cristo, símbolo paisagístico e afetivo da região. Erguido entre 1955 e o fim da década de 1950, o monumento foi idealizado por Caetano Pirri, então proprietário de terras no entorno. A historiadora Keli Nobre, que acompanhou o passeio, destacou como a escultura reafirma a influência católica na urbanização local, marcada também pela chegada da Mannesmann e dos missionários italianos. Mas é Flávia, entusiasmada, quem sugere o melhor dia para visitar o espaço: “Domingo fica cheio. Todo mundo que mora perto vem tomar açaí, comer um peixinho frito, ouvir um rock”.

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No Parque das Águas, oficialmente batizado como Parque Roberto Burle Marx, os visitantes foram recebidos por Heraldo Filho, da Fundação de Parques Municipais. Ali, entre trilhas, espelhos d’água e árvores nativas, o servidor narrou a história do espaço, que já foi casa de campo de prefeitos e abrigo de jovens em situação de vulnerabilidade. Desde 1994, é parque aberto à população. Por lá, o que mais impressionou Flávia foi a diversidade de espécies encontradas. “A gente se acostuma a ver só o cinza da cidade”, refletiu, ao saber que já se avistaram veados-campeiros na área – mas estes são visitantes mais raros, sendo mais comum encontrar nas trilhas do parque pequenos mamíferos, como quatis, e aves, incluindo jacus. 

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À medida que o passeio avançava, outras histórias, muitas vezes esquecidas ou apagadas, vieram à tona. No Point Barreiro, atual sede de uma escola inspirada na pedagogia da Escola da Ponte, Keli recuperou a história do Alforriado Matias, homem negro escravizado que, segundo registros ainda pouco explorados, teria assassinado o senhor da Fazenda Barreiro, o major Cândido Brochado. “O Matias não agiu sozinho. Mulheres escravizadas ajudaram, passaram informações, sustentaram a ação. É um indício forte de uma revolta articulada, não apenas de uma vingança pessoal”, teoriza a historiadora.

Fred Magno / O TEMPO

Já no Viaduto das Artes, o Barreiro desvela a face criativa dos barreirenses. Ocupado por artistas locais, o espaço foi transformado em um centro de cultura, com shows, oficinas, práticas esportivas e exposições. Para Keli, trata-se de “um lugar onde o Barreiro mostra sua criatividade e seu vigor comunitário”. A poucos metros, no Quinta Arte – projeto idealizado por Vander Lee –, o grupo encontrou um espaço vivo de encontros e formação. Ali, oficinas e debates promovem o protagonismo de artistas e moradores. Um dos projetos, em parceria com a UFMG, reuniu mulheres para reflexões sobre antirracismo e feminismo.

Fred Magno / O TEMPO

Ao final do passeio, a sensação dos participantes foi de encantamento – aquele mesmo que Flávia reivindica e exerce, como se fosse uma turista em sua própria casa.

Neuma Horta, de 63 anos, moradora da Sagrada Família e funcionária da Belotur, por exemplo, participou pela primeira vez de um roteiro guiado na região. “Muito positivo. Recomendo para todos”, avalia. Lorrany Stephany, de 24, moradora do Olaria e estudante de pedagogia, por sua vez, ficou impressionada com a profundidade das histórias. “Nunca tinha parado para pensar na história, em saber de quem esteve aqui antes da gente”, admite. Já Cadu Teixeira, o “Mister Bus”, 59 anos, morador folclórico do Barreiro há quase meio século, também saiu tocado: “Achei que já conhecia tudo, mas aprendi muito mais. Excelente!”.