O Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), colegiado formado por representantes de órgãos públicos e da sociedade civil sob coordenação da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), aprovou uma série de medidas que flexibilizam ainda mais os licenciamentos ambientais em Minas Gerais. Entre as mudanças aprovadas, está a retirada da “proteção” a mais de 50 áreas com vegetação nativa cuja preservação têm importância biológica classificada como “extrema” ou “especial”, sendo que, entre estes locais, está a única cordilheira existente no Brasil: a Serra do Espinhaço. As áreas que poderão ser exploradas com licenciamentos simplificados sem a necessidade de vistorias do estado para aprovação de empreendimentos estão distribuídas por todas as regiões do estado (veja a lista ao fim do texto) e, juntas, representam 17% de toda a área de Minas Gerais. 

O TEMPO conversou com um servidor público lotado na Semad, que preferiu não ser identificado por temer “retaliações”, que classificou as mudanças na legislação ambiental como um risco “sério” para a propagação da mineração e do agronegócio no Espinhaço. “Ela fragiliza ainda mais a conservação dos Campos Rupestres, dos recursos hídricos, e do patrimônio espeleológico (cavernas) e arqueológico da região”, afirmou o servidor público. 

Reconhecida há 20 anos como Patrimônio da Humanidade, título concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Cordilheira do Espinhaço nasce em Minas e se estende até o Norte da Bahia, tendo 1,2 mil quilômetros de extensão e atravessando 172 municípios mineiros. O monumento foi alvo, no último dia 24 de junho, do lançamento de uma campanha para divulgação do que o governo de Minas chamou de “novo e extraordinário destino turístico do Estado”

No documento “Biodiversidade em Minas Gerais: um Atlas para sua Conservação”, preparado pela Fundação Biodiversitas, a entidade destaca que a Serra do Espinhaço possui "notável relevância nacional e mundial" por abrigar nascentes de diversos rios e constituir um "ecossistema único", apresentando um alto grau de endemismo (que só existe em uma área específica), com várias famílias de plantas que só existem ali. "Nessa serra se concentram cerca de 80% de todas as espécies de sempre-vivas do país e cerca de 70% das espécies do planeta. A serra abriga ainda 40% das espécies de plantas ameaçadas do estado", detalha o Atlas.  

O funcionário da Semad ouvido pela reportagem explica que a reunião do Copam tinha como foco principal aumentar os parâmetros da Deliberação Normativa (DN) 217/2017, com o objetivo de liberar atividades agrossilvipastoris do licenciamento ambiental. A mudança, que também foi aprovada na ocasião pelo colegiado, passou de 200 para 1 mil hectares a área destas atividades agrícolas que seriam dispensadas de licenciamento. “Porém, com base em um relatório de visita feito pelas entidades que representam os setores da indústria, imobiliário e de mineração, foi incluída a exclusão de um critério locacional que não tinha relação nenhuma com a matéria principal da reunião”, detalha o funcionário. 

Os chamados “critérios locacionais de enquadramento” consistem basicamente em uma tabela com pesos específicos para cada um dos possíveis danos que a implantação de um determinado empreendimento pode causar ao meio ambiente. Dos 11 critérios listados, só três tinham peso 2, o mais alto. Durante a votação, o Copam aprovou a exclusão de um destes critérios de peso máximo, voltado para empreendimentos que venham a promover a “supressão (desmate) de vegetação nativa em áreas prioritárias para conservação, considerada de importância biológica ‘extrema’ ou ‘especial’”.

Dos 20 conselheiros membros do Copam, somente dois votaram contrários às mudanças: a Polícia Militar de Meio Ambiente e o Ministério do Meio Ambiente (MMA). O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) optou pela abstenção. Todos os outros membros, que incluem diversos órgãos do governo de Minas e ONGs de defesa ao meio ambiente, votaram pela alteração na legislação. 

“A retirada deste critério locacional de peso 2 fragiliza demasiadamente a conservação da vegetação presente na Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço, principalmente a que está localizada no bioma Cerrado, uma vez que é uma área não abrangida pela lei da Mata Atlântica. Os setores minerário e imobiliário foram muito beneficiados com a simplificação do processo de licenciamento”, completa o servidor que não será identificado. 

Ele explica que, por exemplo, um pedido para implantação de uma lavra de extração de quartzito, que antes precisaria passar por um processo mais complexo de licenciamento, agora, com a retirada desse critério da lista, passa a ser aplacado pelo licenciamento simplificado.

“A atividade minerária de lavra a céu aberto de rocha ornamental está pipocando na região do Alto Jequitinhonha (Diamantina e cidades do entorno) causando impactos irreversíveis na paisagem natural da Serra do Espinhaço. É lamentável esse afrouxamento, um verdadeiro retrocesso ambiental”, protestou o trabalhador da pasta. 

Licenciamento simplificado ocorre sem vistoria no local

Diretor de Políticas Ambientais do Sindicato dos Servidores Estaduais do Meio Ambiente e da Arsae de Minas (Sindsema), Francisco de Assis da Silva Júnior, que também é gestor ambiental da Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM), destaca que, ao permitir empreendimentos nestas áreas com licenciamento simplificado, o estado deixa, por exemplo, de fazer vistorias no local antes de sua aprovação. 

"Passa a ser um ato quase que declaratório, onde vai ter uma análise mais superficial com relação à documentação. Ou seja, o órgão ambiental deixa de ser protagonista na análise e passa-se a confiar, quase que totalmente, nas informações prestadas pela própria empresa", detalha. "Outro ponto falho é que o licenciamento simplificado passa a ser analisado por um único técnico. Por mais que esse servidor seja competente na área que foi destinado, é diferente nos outros tipos de licenciamento, que é analisado por uma equipe com seis ou sete analistas ambientais, de múltipla formação", completa. 

Já aplicado em Minas Gerais, o processo de licenciamento ambiental simplificado é fruto de debate no país por conta do Projeto de Lei, chamado por ambientalistas de "PL da Devastação", recém aprovado na Câmara dos Deputados. O projeto de lei aprovado recentemente estava no Congresso Nacional há 21 anos e, agora, aguarda posicionamento do presidente Lula.   

Na última quinta-feira (31/7), deputadas apresentaram na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) um projeto de resolução que visa suspender os efeitos das alterações aprovadas pelo Copam. “O Espinhaço é a única cordilheira brasileira, é a espinha dorsal do Brasil. Precisamos atuar em todas as frentes para evitar os avanços contra ela, e eles não são poucos. Uma forma de preservar esse nosso tesouro é justamente garantindo os processos devidos de licenciamento e preservação. Se o que estamos chamando de 'Deliberação da Devastação' passar a valer, como barrar esses empreendimentos de destruir?”, questiona a deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL), que é uma das autoras do projeto.

Áreas de importância “especial” e “extrema” correspondem quase 10 milhões de hectares

Excluídas do critério para definição do tipo de licenciamento ambiental, as áreas prioritárias para conservação da biodiversidade de importância "especial" e "extrema", que, agora, podem ter licenças simplificadas para empreendimentos, totalizam mais de 9,8 milhões de hectares. A área corresponde a cerca de 17% de todo o território mineiro. 

"Infelizmente essas vegetações não têm proteção específica, mas abrigam espécies da flora na lista de ameaçadas de extinção, além de inúmeras espécies endêmicas", lamenta o servidor da Semad entrevistado sob anonimato por O TEMPO.

Questionada pela reportagem sobre os riscos das medidas aprovadas pelo Copam para a preservação da Cordilheira do Espinhaço e outras áreas de importância "extrema" e "especial" de Minas, a Semad se posicionou por nota. A pasta argumentou que a missão do Copam é "deliberar sobre normas técnicas e operacionais voltadas à proteção ambiental, com base em critérios técnicos, legais e na busca pelo uso sustentável dos recursos naturais".

"Em relação aos questionamentos, a Semad informa que a principal mudança envolve o tipo de estudo que será apresentado no âmbito do licenciamento ambiental. A alteração não modifica as regras de proteção existentes", argumentou a secretaria. A pasta não respondeu se a possível facilitação da exploração mineral e agropecuária na Cordilheira do Espinhaço não poderia afetar o turismo na região alvo de divulgação pelo estado.

Em publicação feita pelo governo de Minas sobre o que chamou de "novas regras para simplificar licenciamento ambiental para produtores rurais", a secretária Marília Melo afirmou que as medidas adotadas "não se confundem com intervenção ambiental ou desmatamento". "Minas continua a defender o crescimento com responsabilidade. A simplificação de procedimentos para quem produz sem degradar, mantendo rígidos instrumentos de controle sobre atividades de alto impacto. ​Essa é a proposta do governo de Minas para a verdadeira sustentabilidade: equilibrar produção, proteção e prosperidade para esta e para as próximas gerações”, afirmou.

 

Áreas de importância "especial" e "extrema" aparecem, respectivamente, em verde e vermelho no mapa l Atlas Biodiversitas

Áreas de importância "especial" e "extrema" aparecem, respectivamente, em verde e vermelho no mapa l Atlas Biodiversitas

Confira as listas com todas as áreas afetadas pela mudança: 

VEGETAÇÕES DE IMPORTÂNCIA BIOLÓGICA ESPECIAL

  • Vale do Rio Peruaçu
  • Região de Jaíba
  • Várzeas do Médio Rio São Francisco
  • Vereda São Marcos
  • Espinhaço Setentrional
  • Serra do Cabral
  • Área Peter Lund
  • Espinhaço Meridional
  • Alto Rio Santo Antônio
  • Parque Estadual do Rio Doce
  • Lagoas do Rio Doce
  • Complexo do Caparaó
  • Serra do Brigadeiro
  • Quadrilátero Ferrífero
  • Serra da Canastra
  • Região de Barbacena e Barroso
  • Região do Parque Estadua do Ibitipoca
  • Região da Serra da Mantiqueira

 

VEGETAÇÕES DE IMPORTÂNCIA BIOLÓGICA EXTREMA

  • Complexo Jaíba / Peruaçu
  • Parque Nacional Grande Sertão Veredas
  • São Miguel
  • Rio Itacambiruçu
  • Região de Bandeira
  • Reserva Biológica da Mata Escura
  • Região de Salto da Divisa
  • Região de Cariri
  • Rio Mucuri
  • Alto Jequitinhonha
  • Região de Buritizeiro / Pirapora
  • Fazenda Brejão
  • Serra da Carcaça
  • Remanescentes Lóticos do Rio Paranaíba
  • Lagoas do Rio Uberaba
  • Fazenda Tatu
  • Veredas de Uberaba
  • RPPN Galheiro
  • Região de Paraopeba
  • Província Cárstica de Lagoa Santa
  • Serra do Ambrósio
  • Região de Caratinga
  • Região de Carangola
  • Complexo da Serra do Brigadeiro
  • Região de Porto Firme
  • Florestas da Borda Leste do Quadrilátero
  • Área Cárstica de Arcos/Pains
  • Alto Rio São Francisco
  • Entorno da Serra da Canastra
  • Região de Poços de Caldas
  • Serra de São José
  • Rio Pomba
  • Matas de Pirapetinga