Em 1994, Maria Carolina*, de 57 anos, e sua sobrinha, Marilene Parreiras, de 56, saíram de Vargem Alegre, cidade com pouco mais de 3 mil habitantes na região do Rio Doce, e vieram para Belo Horizonte em busca de uma vida melhor para elas e a família. Trinta e um anos depois, é difícil acreditar que a diferença de idade entre elas seja de apenas um ano. Isso porque, enquanto Marilene está forte e falante, a tia, que mal consegue se levantar da cadeira de rodas, fala com muita dificuldade após sofrer uma série de AVCs. O que difere a trajetória das duas nestas três décadas é que a sobrinha trabalhou formalmente, com todos os direitos preservados, enquanto a tia teria sido forçada a trabalhar durante todo esse tempo na residência de um casal de advogados, no bairro Cidade Nova, na região Nordeste de Belo Horizonte, sem receber salário, sem hora para começar e terminar ou sequer ter direito a férias.
A denúncia de trabalho análogo à escravidão foi formalizada à Polícia Civil em junho deste ano, a pedido da vítima. Agora, a família conseguiu acionar um advogado que está preparando ações judiciais para buscar reparação para ela. No registro policial, a vítima relatou que trabalhou por mais de 30 anos para o casal, que alegou que a pagaria com alimentação e moradia, no caso, um quartinho apertado próximo à cozinha, onde só cabia ela, sua cama e um pequeno armário onde guardava as roupas de doação que a vestiram durante todo esse tempo.
Em entrevista a O TEMPO na última quinta-feira (21/8), Marilene, que precisou largar o serviço para cuidar da tia, contou que elas conheceram a patroa da tia em um templo budista. "Ela (advogada) gostou da minha tia e, uns 15 dias depois, ela começou a trabalhar lá, onde ficou até em 2024", detalha. No começo, Maria Carolina a encontrava quase todo final de semana. Porém, com o passar dos anos, foi se afastando cada vez mais. "Quando ligava, ela falava que não podia conversar pois estava agarrada, trabalhando. A gente a chamava para viajar, e ela nunca podia, ou porque ia viajar com eles (advogados) ou por não ter dinheiro. Ela nunca tinha dinheiro, nem R$ 200 para ir visitar os nossos parentes no fim de semana. E com isso, a gente foi se afastando, pois eu achava que ela estava fazendo isso por vontade própria", conta Marilene.
Em 2024, porém, a coisa mudou, quando a mulher sofreu um AVC e precisou ser hospitalizada. "A advogada me ligou falando que a assistente social do hospital queria falar comigo, pois eu tinha que buscar ela, já que não tinha condições de trabalhar mais e não voltaria para a casa deles. Foi aí que soube que ela ia ter alta em três dias. Eu chorei muito, pois, quando eu precisei da minha tia, para ela vir almoçar comigo, ir passar Natal, Ano Novo, aniversário dela, meu aniversário, a tia não podia ir nunca. Eles nunca permitiram que a tia fosse", disse a sobrinha enquanto segurava o choro.
Depois de quase um ano na casa da sobrinha, fazendo acompanhamento médico e fisioterapia, um dia, durante o almoço, Maria Carolina começou a falar sobre o tempo na casa da família, dando detalhes de tudo o que passou ao longo desses 30 anos. "Ela começou falando do filho deles, que ela criou, né? E eu fui dando corda, pois ela nunca falava. E foi aí que ela perguntou se a gente não ia fazer nada, falou que era tratada igual uma escrava, que não saía de lá por não ter para onde ir. E me pediu para levá-la na delegacia", lembra a sobrinha da mulher.
Na unidade policial, Maria Carolina contou que, ao longo de todo o tempo, todas as roupas que usava eram fruto de doações, uma vez que não tinha salário; que era maltratada pelos patrões; e que era chamada pelo casal a qualquer hora do dia e da noite, sem nunca ter folga ou férias. Ela relatou ainda que, quando precisava de dinheiro para algo, precisava vender produtos de beleza por fora.
"Um dia, minha tia ligou para essa advogada e perguntou do acerto. Ela (patroa) respondeu gritando, perguntando de onde ela havia tirado isso, questionando quem colocou essa ideia na cabeça dela. Ainda ameaçou dizendo que, se ela fosse acionar a Justiça, quem teria que pagar era ela, pois teria que pagar as custas processuais", relata, sem esconder a indignação, Marilene.
Com muita dificuldade de falar, devido a um novo derrame sofrido recentemente, Maria Carolina confirmou durante rápida entrevista a O TEMPO ter trabalhado para o casal. "Lavava tudo lá, vasilha, roupa... agora é que é bom, com a Marilene (sobrinha), aqui é coisa boa", disse ao ser perguntada sobre o tempo em que trabalhou com a família. Questionada se dormia cedo ou tarde, ela fechou a cara, dizendo apenas "É!". "Quero lembrar mais não", completou a mulher, deixando claro que não gosta de reviver o que passou lá.
Em outro momento, Maria Carolina disse, confusa sobre a ordem cronológica das coisas, que um dos filhos dos patrões teria ido visitá-la. "Ele falou comigo: 'Ô Carolina, você é a minha mãe'", lembra, sem esconder o carinho pelos filhos dos patrões, que acabaram sendo criados por ela ao longo destes 30 anos. Em outro momento, ela também cita a filha de um deles, neta dos patrões, de quem também chegou a cuidar nos últimos anos do suposto trabalho forçado.
"Está aqui para limpar", teria dito advogado ao sujar chão após faxina
No relato da sobrinha de Maria Carolina, nas conversas sobre o tempo na casa dos advogados, a mulher chegou a dizer que era maltratada. "Ela diz que, quando a casa estava limpinha, o advogado pegava melancia, molhava a casa toda e falava que era para ela limpar de novo, que era obrigação, pois ela estava lá para limpar. Ela disse que eles gritavam com ela quando não sabia fazer algum dos afazeres que eles ordenavam. Desde que ela chegou aqui, tem vez que eu vou pegar nela e ela assusta, e fala que pensou que eu iria bater nela", lembra Marilene.
Enquanto ainda tinha memória e capacidade para falar, a doméstica teria contado ainda que, nos dias de eventos, como Natal, Ano Novo e a aniversários da família dos advogados, ela ficava até 1h, 2h da madrugada trabalhando para limpar as vasilhas dos convidados enquanto os patrões dormiam. "Ela diz que estava lá, em pé, sentindo dor, doida para dormir, e chorando. Deitava na cama chorando e pensava que queria voltar para a família, mas que lembrava que não tinha o pai ou mãe mais", conta emocionada a sobrinha da trabalhadora.
O TEMPO tentou contato por telefone com o casal de advogados, mas, até a publicação desta reportagem eles não tinham se manifestado. A versão deles será incluída assim que for recebida pela reportagem. Já a Polícia Civil afirmou que, por se tratar de um caso de trabalho análogo à escravidão, a Polícia Federal deveria ser procurada. A outra corporação também foi indagada, mas ainda não se posicionou sobre o caso.
Advogado defende que doméstica teve a "juventude" roubada
Após ser acionado pela família de Maria Carolina*, o advogado Alexandre Lopes de Oliveira conta que ainda está reunindo toda a documentação com as provas da relação de trabalho da vítima com os patrões para poder ajuizar ações judiciais nas esferas trabalhista, cível e criminal. "Precisamos minimizar os danos que foram causados à ela", afirma.
"É uma vida perdida, né? Dinheiro nenhum vai conseguir reparar totalmente o dano causado, mas é possível sim minimizar essa situação repugnante. Esse casal passou 33 anos, construíram muita coisa às custas do trabalho da minha cliente. Eles pegaram a juventude dela, que tinha 20 e poucos anos na época, para cuidar dos filhos deles, da casa. Ela possibilitou que eles pudessem sair para trabalhar com a segurança de ter alguém para cuidar dos filhos. Portanto, o patrimônio que construíram, foi a escusa dela (Maria Carolina), que não pode estudar, namorar, não pode juntar nada, pois não tinha salário. Por isso iremos buscar sim uma reparação", concluiu o advogado.
Marilene destaca ainda que, hoje, passa dificuldades financeiras para cuidar da tia, que só recebe cerca de R$ 1.500 do Benefício de Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social (BPC-LOAS), valor pago a pessoas com deficiência de qualquer idade. "Só de fralda estamos gastando R$ 90 a cada dois dias. Fora os medicamentos que ela está tomando, a alimentação", pontua.
"Acho que temos sim que acionar a Justiça, pois eles não podiam simplesmente largar minha tia dessa forma, como se fosse um cachorro de rua. Ela trabalhou por mais de 30 anos para eles e não teve nenhum acerto? Eu creio que a Justiça dos homens vai ser feita, mas, se não for, a Deus será. A gente não quer se beneficiar com isso, só quero dar um resto de vida digna para minha tia depois de tudo o que passou", finaliza Marilene.
Outra doméstica foi resgatada em situação semelhante em abril
Um mês antes de Maria Carolina resolver denunciar seu caso à polícia, um caso semelhante foi registrado também na capital de Minas Gerais. Em abril deste ano, uma operação resgatou uma idosa de 63 anos após mais de 30 anos trabalhando sem salário para uma família de outro advogado de BH. Na ocasião, as Auditoras-Fiscais do Trabalho (AFT), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), constataram que, durante as mais de três décadas, a idosa cozinhava, arrumava casa, lavava e passava roupas, além de ser responsável por cuidar de crianças, animais e, até mesmo, dos empregadores, também idosos. Tudo isso sem nunca ter sido registrada, recolher FGTS ou receber salários, trabalhando, assim como Maria, em troca de moradia e alimentação.
Ouvido por O TEMPO nesta sexta-feira (22/8), Carlos Calazans, superintendente Regional do Ministério do Trabalho em Minas Gerais, detalhou que, após o resgate feito durante a fiscalização, a idosa teve uma indenização estipulada em mais de R$ 100 mil. "O advogado (patrão) ainda bateu boca com os nossos fiscais, achou aquilo um absurdo e falou que ela era como se fosse da família. Como pode um desembargador, juiz, ou advogado praticar esse tipo de crime? Quem deveria dar proteção para as pessoas cometerem isso", protesta.
Sem saber os detalhes do caso de Maria Carolina, Calazans acabou descrevendo a história da mulher ao falar, de forma genérica, sobre os casos de trabalho doméstico análogo à escravidão. "Geralmente, essas pessoas vêm do interior, muito novas, e perdem a relação com os familiares de origem. Começam fazendo serviços pequenos, e, quando veem, passaram 30, 40 anos trabalhando ali sem receber nada. Ficam até de madrugada fazendo comida, esperando os donos da casa chegarem. Não estudam, não saem, não se relacionam. Já resgatamos pessoas que mal tinham roupa, que dormiam no porão nos fundos da casa, dormindo em um colchãozinho sujo", lamenta.
Denúncia da população é principal arma contra o crime
Para Calazans, existe uma dificuldade do MTE em identificar os casos de trabalho doméstico escravo, uma vez que está acontecendo dentro da casa dos suspeitos. "Nós só podemos agir se tiver uma denúncia. Só assim podemos começar a pesquisar, para poder abordar e resgatar essa pessoa. Só com o apoio da sociedade, um vizinho, ou um parente dos suspeitos que vai visitar a pessoa na casa e perceber que alguém está em uma situação de vulnerabilidade. Até mesmo a própria pessoa pode denunciar, hoje em dia é difícil a pessoa ficar sem um celular. Se você sentir que está sendo explorado, denuncie", clama.
As denúncias de trabalho análogo ao de escravo podem ser feitas pelo Sistema Ipê, online, ou pelo Disque 100.
*Nome fictício para proteger a vítima da exposição