Acolher a dor da perda e respeitar o tempo de quem enfrenta o luto profundo de perder um filho logo após o nascimento passam a ser obrigações legais no Brasil a partir desta segunda-feira (25/8). A chamada Lei do Luto Parental estabelece que famílias que sofrerem a morte de um bebê tenham atendimento específico e multidisciplinar da unidade de saúde. Antes de virar lei, esse acolhimento humanizado fez diferença na vida da produtora de eventos Maria Júlia Souza (Maju), de 37 anos, que passou pela perda de um bebê em março deste ano. Zack morreu antes de nascer, mas a mãe passou pelo parto no Hospital Maternidade Sofia Feldman, e teve o auxílio necessário para viver o luto. “Eu tive sorte de encontrar uma equipe que me acolheu. Mas não pode depender de sorte. Com a lei, toda mãe terá o direito de se despedir com dignidade”, considera a mãe.

Agora, muitas mulheres podem se beneficiar do cuidado especializado já que, conforme dados da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG),a perda neonatal atravessa muitas vidas. Em 2025, até 20 de agosto, o estado registrou 747 mortes neonatais. Em 2024, foram 1.710 — perdas gestacionais são registradas como óbitos fetais quando ocorrem entre a 22ª semana de gestação e o momento do parto. A partir desta segunda-feira (25/08), a Política Nacional de Humanização do Luto Materno e Parental, prevista na Lei do Luto Parental (lei  nº 15.139, de 23 de maio de 2025), estabelece a oferta de acolhimento humanizado e digno a mulheres e familiares que enfrentam perdas gestacionais, fetais ou neonatais. A política prevê apoio psicológico, acomodação separada e espaço adequado para que a família realize a despedida, entre outras ações. 

Apesar de representar uma garantia, a legislação chega após muitas mulheres e famílias terem passado pelo momento de luto sem o apoio necessário. Para a doula e enfermeira obstetra Rebeca Charchar, o acolhimento respeitoso às famílias já deveria acontecer independentemente de lei. “Fico impressionada como a gente precisa de uma lei para falar do óbvio: a questão do acolhimento. Especialmente numa situação tão específica e delicada como o luto parental, é de suma importância que a atenção humanizada esteja presente em qualquer cuidado de saúde”, considera

Para Maju, que viveu uma perda gestacional, a despedida e o acolhimento são fundamentais no processo do luto. “A despedida digna não tira a dor, mas traz paz e sustentação para seguir. Pode parecer estranho segurar o bebê sem vida, mas só faz sentido para quem passa por isso. Ter a opção de escolha e profissionais que orientem sobre a importância desse momento muda completamente o luto”, disse.

Reconhecer a dor e dar tempo ao luto 

Para a especialista em luto perinatal e saúde emocional da mulher, Daniela Bittar, a perda de um filho é uma das experiências mais devastadoras que alguém pode viver. “A melhor assistência não tira a dor, mas pode evitar o trauma”, diz. Segundo Daniela, desde o instante em que a notícia é comunicada até os detalhes da despedida, cada etapa faz diferença. “É diferente receber a notícia sozinha ou acompanhada, com acolhimento ou de maneira fria e brusca. Esses detalhes ficam gravados na memória e moldam a forma como o luto será elaborado”, explica. 

Para ela, outro ponto essencial é o protagonismo da mãe e da família nas escolhas. “Essa mulher precisa ter a possibilidade de escolher a via de parto, compreender cada etapa e se sentir respeitada. O erro é tratá-la como se merecesse menos cuidado porque o bebê não está mais vivo”, destaca. 

A especialista ressalta ainda a importância dos rituais de despedida no processo do luto. “Ver, segurar, contar os dedos, tirar fotografias ou guardar recordações como mechas de cabelo ou impressões da mãozinha e do pezinho ajudam a dar concretude à memória. Quando não há despedida, fica um vazio, um vácuo na memória e no coração”, detalha. 

Daniela também explica que o cuidado deve se estender aos profissionais que atuam na linha de frente. “Profissionais vivem sob pressão e, muitas vezes, carregam suas próprias dores. É essencial que eles também tenham espaços de escuta, terapia, rodas de conversa, para não se sobrecarregarem. Só assim conseguem oferecer suporte verdadeiro às famílias”, conclui. 

“O acolhimento foi o diferencial”, diz mãe 

Antes da legislação tornar o acolhimento dessas mulheres obrigatório, duas mães que viveram a dor da perda relatam como o cuidado recebido fez diferença. A auxiliar administrativo Thaís Cardoso, de 30 anos, conta sobre a perda da filha quatro dias após o nascimento. “Eu estava grávida de 29 semanas quando a bolsa rompeu. Achei que teria minha filha no dia seguinte, mas precisei esperar até 34 semanas. No dia 4 de fevereiro, ela nasceu de cesariana de urgência, com 1,2 kg, e foi direto para o CTI. No quarto dia, infelizmente, ela não resistiu”, contou emocionada. 

Ela foi atendida no Hospital Neocenter e relata que, apesar da tristeza imensa, sentiu-se respeitada e apoiada. “Por incrível que pareça, mesmo nesse momento tão doloroso, a experiência foi surreal. Fui muito bem acolhida e atendida desde o primeiro dia. Até a parte ruim eles conseguiram transformar em algo mais leve”, explicou. 

Para ela, o especial foi o atendimento da equipe. “O acolhimento foi o diferencial. Todos — médicos, enfermeiros, assistentes sociais, até o pessoal da cozinha — nos trataram com respeito, carinho e como se fôssemos parte da família”, disse. 

"Essa foto é do dia que fui agradecer, 3 meses depois, mesmo tudo ainda estando um caos", disse Thaís | Foto: Arquivo pessoal

 

Durante o atendimento, Thaís recebeu uma caixa de memórias, o que considera fundamental para o processo de luto. “A assistente social me entregou a caixa com muito carinho. Dentro estavam os carimbos dos pezinhos da minha filha, um pedacinho do cabelo e a touquinha que ela usou no CTI. Foi emocionante e me ajudou a lidar com o luto”, afirmou. 

Maju também passou pela perda de um bebê em março deste ano. Ela foi atendida pelo Hospital Sofia Feldman e relatou que teve uma gravidez saudável e tranquila, e que estava arrumando a mala para a maternidade quando começou a sentir dor. “Estava tudo correndo para dar certo, até que comecei a sentir contrações mais fortes e tive um pequeno sangramento. Fui então para o hospital, justamente no momento em que arrumava minha mala de maternidade. Eu estava com 38 semanas e 3 dias”, detalhou. 

Ela relatou que o processo foi cuidadoso e que os profissionais checaram várias vezes antes de confirmarem a morte do bebê. “O que me impressionou foi o cuidado. Repetiram o exame várias vezes, com três profissionais diferentes, e usaram também dois sonares. Só então disseram: ‘Olha, infelizmente tentamos de tudo, mas não há batimentos. Seu bebê está sem vida’”, contou emocionada. 

Maju destaca a importância desse acolhimento e do respeito que recebeu. “Desde a confirmação cuidadosa da morte até me entregarem o Zack no colo e me permitirem ficar com ele, dar banho, despedir… tudo fez diferença. Também houve cuidado com a condução, só falaram sobre os trâmites do enterro quando eu e meu marido estávamos prontos. Isso foi muito respeitoso”, explicou. 

“Fiquei em um setor separado, longe de mães com bebês. Recebi lanche no quarto, acompanhamento psicológico, atenção de toda a equipe de enfermagem. Esse cuidado me poupou de situações que poderiam ter sido ainda mais dolorosas”, acrescentou. 

Para ela, ter seguido com o planejamento e ter tido tempo para a despedida foi essencial para lidar com o luto. “Pude dar banho nele, colocar fralda, vestir roupinha… fiz todo o ritual que esperei durante 9 meses. Eu posso dizer que fui mãe até o fim. Minha família pôde entrar, se despedir, segurar o Zack. O hospital deu todo o suporte, permitiu que eu tivesse esse tempo, esse momento. Foi fundamental”, disse. 

Experiência de acolhimento: como os hospitais se preparam? 

Antes mesmo da lei, o Grupo Neocenter já buscava oferecer apoio humanizado às famílias enlutadas. A instituição possui protocolos de acolhimento desde 2022, que incluem acompanhamento psicológico, suporte da equipe de enfermagem e respeito aos rituais de despedida.  “O Neocenter já aplicava esse protocolo antes mesmo da lei. Desde 2022, decidimos montar esse projeto, pensado para acolher de forma digna as famílias em luto. Ele foi muito bem aceito por toda a instituição. Da equipe de higienização aos médicos, todos compreenderam a importância desse cuidado”, explicou a coordenadora de hospitalidade da maternidade, Raquel Braga. 

Raquel detalha que, desde o pronto-atendimento, a família já recebe atendimento diferenciado para que não haja constrangimentos e para que tenha um local reservado para viver o luto. “Essa família é direcionada para uma sala reservada, distante das outras pacientes que estão ali por motivos diferentes, celebrando a chegada de seus bebês. Essa separação evita constrangimentos e confusões”, disse. 

Ela afirma que, ao ser confirmado o diagnóstico, muitas vezes é necessário induzir o parto do bebê sem vida — e que esse processo também é tratado com cuidado. “Esse procedimento é realizado em um quarto preparado, no qual retiramos, por exemplo, o berço, para que o ambiente seja mais adequado”, explica. 

Após o parto, é dado tempo para que a família decida quando prosseguir com a despedida. “O bebê é colocado no colo da mãe ou da família, e são eles que decidem o momento de seguir com a parte burocrática”, detalha. 

O hospital também oferece a caixa de memórias, que ajuda a integrar a experiência do luto. “Acreditamos que as memórias não precisam ser apagadas. A caixa é uma forma de eternizar o amor e o aprendizado. Nela, a mãe pode guardar a roupinha usada pelo bebê, a touca, a pulseirinha, uma cartinha delicada e o carimbo do pezinho”, conclui. 

O Sofia Feldman, onde Maju foi atendida, inaugurou, em abril do ano passado, o Ambulatório de Apoio ao Luto Perinatal, em parceria com o Projeto Renascer: cuidado multidisciplinar do luto perinatal, da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Localizado na unidade do bairro Carlos Prates, o local oferece atendimento personalizado a mães e familiares que enfrentam a dor da perda de bebês durante a gestação ou nos primeiros dias após o parto. A proposta nasceu também com a intenção de ser modelo para outros hospitais do Sistema Único de Saúde, onde há poucos espaços especializados na promoção desse tipo de cuidado.

Caixa de memórias | Foto: Grupo Neocenter

 

Profissionais de apoio: o papel das doulas  

Além das equipes médicas e psicológicas, doulas também desempenham papel essencial nesse processo. A doula e enfermeira obstetra Rebeca Charchar lembra que o cuidado não se restringe ao nascimento, mas se estende também em casos de perda. “As doulas têm um papel muito importante nessa travessia. Muitas vezes já acompanham a gestante desde antes da perda e podem garantir que o plano de parto seja respeitado, que o ambiente seja acolhedor e que a despedida seja respeitosa”, disse. 

“Nós também fazemos a ponte com outros profissionais de saúde: ajudamos a lidar com lacerações, cesarianas, com o leite que desce no peito — se a mãe quiser doar ou interromper a produção. As doulas já são preparadas, nos cursos de formação, para lidar com perdas gestacionais e óbitos neonatais”, acrescentou. 

Rebeca também alerta para a preparação emocional dos profissionais de apoio. “Na hora do parto, precisamos estar firmes. Depois, também temos nossas redes de apoio: mentoras, colegas doulas, psicólogas com quem podemos conversar e chorar. É diferente do planejado, e precisamos cuidar da gente também”, destacou. 

“A doula acolhe a mãe, a família e também o bebê, mesmo quando o desfecho é diferente do esperado. É sobre garantir memória, dignidade e cuidado”, concluiu. 

Abortos e o impacto emocional 

Minas Gerais registrou 107 abortos legais em 2025, segundo dados da SES-MG. A consultora de imagem e estilo Williana Matias, de 46 anos, enfrentou sete abortos entre 2013 e 2018, até ter seu primeiro filho e relata que, na época, o tema era cercado de silêncio e culpa. “Minha família nem sabia de todos os abortos que tive. Eu pensava: ‘Será que estou provocando isso inconscientemente?’. Também me sentia menos mulher, incapaz de segurar um filho”, conta. 

Ela lembra da falta de acolhimento médico e do peso social sobre a mulher. “No quinto aborto, um plantonista me tratou como se eu fosse uma aberração. Quando se fala em aborto, sempre apontam para a mulher. A carga emocional recai toda sobre nós, além da dor física”, explica. 

Para a consultora, o acompanhamento psicológico foi fundamental. “Engravidei de novo depois de tantas perdas e vivi a gestação inteira com medo. Eu tive meu filho por insistência. Ele tem seis anos hoje”, disse Williana. 

Williana e seu filho Théo | Foto: Fred Magno / O TEMPO

 

A experiência a levou a um conselho para outras mulheres que sonham em ser mães: “Cada gravidez é única. Não se compare a outras mulheres. Ressignifique o luto e traga a questão da vida. É o único caminho para seguir”.