Nas redes sociais, a mineradora canadense Sigma Lithium se descreve como uma indústria de “lítio verde”. Instalada no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais áridas de Minas Gerais, a empresa chega a afirmar em algumas publicações que consome “apenas 30 metros cúbicos por hora”, o equivalente a 720 mil litros por dia. Segundo ela, isso seria 13 vezes menos do que demanda uma plantação de banana irrigada. Na prática, porém, para manter as atividades da unidade, a indústria consome mais do que o dobro do que foi divulgado na internet. Por dia, ela retira 1,9 milhão de litros no rio Jequitinhonha, que corre nos municípios de Araçuaí e Itinga, onde ela atua. O consumo de água tem incomodado a população local que convive com a seca. Movimentos sociais chamam o cenário de “apartheid hídrico” e denunciam falta de fiscalização. A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) admite não acompanhar o consumo de água pela Sigma e explica que a mineradora ainda pode enviar relatório de automonitoramento em janeiro de 2026.  

As duas cidades são consideradas altamente sensíveis às mudanças climáticas pelo Índice Mineiro de Vulnerabilidade Climática (IMVC) de 2024, documento elaborado pela própria Semad. Em abril deste ano, a reportagem de O TEMPO esteve na região, onde ouviu relatos dos moradores. Vizinha à mineradora, a comunidade de Piauí Poço Dantas, em Itinga, é, certamente, a mais impactada. A Escola Municipal Nuno Murta, por exemplo, está localizada a apenas 300 metros do local onde a empresa ergue uma pilha de estéril. Localizado entre as duas cavas já abertas, o ribeirão Piauí, um dos afluentes mais importantes da margem direita do Jequitinhonha, fica a pouco mais de 50 metros do local das escavações, sendo inclusive cortado por uma ponte com tráfego constante de caminhões. 

Imagem aérea mostra a ponte sobre o ribeirão Piauí, que liga as duas cavas da Sigma l Fred Magno/O Tempo

 

Nascida e criada na comunidade, Maura Ribeiro dos Santos, 56, lembra que, até a chegada da mineradora, o ribeirão era a principal diversão das famílias locais. “Hoje não tem como mais, com essa água barrenta”, conta, sem esconder a indignação. Ainda segundo ela, para além da água, o solo das casas que fazem divisa com a mineradora também passou a apresentar baixa qualidade desde o início da operação da Sigma. "Plantar a gente até planta, mas tudo morre", lamenta Maura.

Entre 2020 e 2024, a região do Jequitinhonha somou 302 decretos de situação de emergência devido à seca ou estiagem, o que colocou a região como a segunda mais impactada de Minas no balanço divulgado pela Coordenadoria Estadual de Defesa Civil de Minas Gerais (Cedec-MG). Diante deste cenário, o evento Clímax 2025 - 2º Encontro de Cultura, Comunicação e Clima, realizado em Diamantina em julho deste ano, formou uma coalizão entre movimentos sociais, pesquisadores e autoridades que buscam “frear” o avanço da mineração predatória no território.

Cineasta, ativista e cofundador do Clímax, Ricardo Targino destaca que o “apartheid hídrico” é um conceito utilizado para denunciar a “desigualdade no acesso e na distribuição da água causada pela mineração de lítio na região”. O relatório final da coalizão aponta que, enquanto a empresa pode captar 3,6 milhões de litros de água por dia, “comunidades locais sobrevivem com menos de 20 litros diários por família”.

“Ele (apartheid) se manifesta na prática quando empresas como a Sigma Lithium têm acesso a grandes volumes de água para suas operações, enquanto as comunidades locais enfrentam escassez e contaminação. Moradores relatam que a água do ribeirão Piauí está totalmente poluída com sedimentos de metais tóxicos. A própria empresa teria aconselhado a população a não consumir a água do rio por causar irritações na pele. Em vez disso, a Sigma fornece água em caminhões-pipa, que os moradores consideram insuficiente e com cheiro forte de cloro”, pontua.

Ainda segundo o organizador do evento, eles acionaram a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), que teria admitido não possuir relatórios sobre a fiscalização de água pela Sigma. “O automonitoramento da empresa só se tornaria obrigatório em 1º de julho de 2025, mas a empresa não havia enviado voluntariamente a Declaração Anual de Uso de Recursos Hídricos nos anos anteriores”, completa Targino. A ANA foi questionada sobre a fiscalização no uso dos recursos e confirmou que, desde 1º de julho de 2025, a mineradora está obrigada a fazer o monitoramento mensal dos volumes captados do rio Jequitinhonha, o que só deverá ser enviado à agência em janeiro de 2026. “A empresa Sigma está entre as vistorias na campanha de fiscalização prevista para este ano”, completou.

“A Sigma promove seu produto como ‘Lítio Verde Quíntuplo Zero’ e afirma usar ‘zero água potável’ e reciclar 100% da água. No entanto, a alegação é contestada. A extração em larga escala de água de rios e aquíferos, independentemente de sua potabilidade inicial, compromete o balanço hídrico da região e o direito humano à água das comunidades que dependem dessas fontes para consumo, agricultura e pecuária”, finaliza o organizador do encontro. 

Ribeirão pode sofrer “impactos graves”, diz MPF

No início de setembro deste ano o Ministério Público Federal (MPF) encaminhou uma recomendação à Agência Nacional de Mineração (ANM) pedindo a suspensão e a revisão das autorizações de pesquisa e extração de lítio na região do Jequitinhonha. Entre os problemas constatados pelo órgão está a ausência da consulta às comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais da região, que deveriam ter sido ouvidas antes da liberação dos projetos. Para a elaboração da recomendação, o órgão de Justiça fez uma série de relatórios, entre eles, um que aponta que a “ampliação da mineração aumentará a pressão sobre a infraestrutura e os recursos hídricos da região”, podendo causar impactos graves no nível do corpo d’água.

“Laudo técnico elaborado pelo MPF apontou, ainda, deficiências no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apresentado pela Sigma Mineração, em 2021, em relação aos impactos nos recursos hídricos pela exploração de minério na região de Araçuaí e Itinga. A localização das duas cavas – locais de retirada de material para explorar o minério – levanta sérias preocupações quanto à interferência no ribeirão Piauí, em especial pelo rebaixamento do nível d’água para a lavra”, divulgou o MPF.

Além de ter sido “cercado” pelas duas cavas da Sigma, o ribeirão Piauí também está localizado em alguns trechos a menos de 100 metros de onde a empresa ergue suas pilhas de rejeitos. Quando O TEMPO esteve na comunidade de Piauí Poços Dantas, não era raro presenciar pedras rolando do alto da pilha e indo parar dentro do leito do corpo d’água. O laudo elaborado pela perícia técnica apontou, conforme o MPF, que a situação é particularmente crítica, uma vez que o ribeirão constitui a principal fonte de abastecimento de água para os moradores da área e comunidades rurais no entorno, “especialmente em períodos de estiagem”.  

“A exploração do lítio não pode repetir um ciclo histórico de exploração predatória e exclusão social no Vale do Jequitinhonha. É dever do Estado garantir o direito à consulta prévia, livre e informada, para que as comunidades possam decidir sobre o futuro de seus territórios e modos de vida”, disse o procurador da República Helder Magno da Silva, autor da recomendação.

Ampliação pode devastar área do tamanho de 480 “Mineirões”

Os impactos da mineradora canadense em seu curto período de atuação na região não se restringem à utilização da água. Durante seu segundo ano de operação, em 2024, a Sigma Lithium extraiu, conforme nota enviada pela própria empresa, 1,5 milhão de toneladas de minério, o que resultou em uma produção de 270 mil toneladas de concentrado de óxido de lítio. Essa enorme diferença entre o que é retirado do chão e o que é efetivamente comercializado pela empresa, resulta em gigantescas pilhas do que é chamado de “estéril”.

Atualmente, a Sigma tenta obter o licenciamento ambiental para a chamada “ampliação da Fase 2” do Projeto Grota do Cirilo, que dobrará a capacidade de produção anual de lítio da planta. Caso seja aprovada, a empresa elevará para 342 hectares a sua área de ocupação, sendo 192,3 hectares que serão soterrados para implantação das pilhas de estéril e 149,7 hectares de área verde que será suprimida para a extração do mineral. Para se ter ideia, a área total equivale a aproximadamente 480 gramados do estádio Mineirão alinhados lado a lado.

Em busca de proporcionar um maior entendimento da população sobre o que está sendo licenciado pela Sigma, um grupo de pesquisadores de três grandes universidades públicas mineiras (UFMG, Unimontes e UFVJM) se debruçou sobre os estudos apresentados pela própria mineradora canadense. Após a análise, foi elaborada uma nota técnica para ser apresentada durante audiência pública, que aconteceu em abril deste ano. A análise dos documentos técnicos levou à conclusão de que a mineradora teria optado pelo método de lavra a céu aberto, apesar da existência de uma alternativa com menor impacto ambiental a poucos quilômetros de distância dali.

“Em pouco mais de um ano de atuação, a Sigma causou um grande estrago na paisagem, é visível para qualquer um que viaja pela região. Temos a 2 km de distância dali uma outra empresa, a CBL, que faz a extração subterrânea de lítio há 30 anos. O que constatamos é que, em um ano de atividade, a Sigma já causou um estrago muito maior do que a CBL.Isso, obviamente, gera dúvidas, uma vez que a Sigma, que se diz sustentável, faz essa mineração a céu aberto enquanto temos uma alternativa tecnológica menos danosa logo ao lado”, pondera.

A comparação é inevitável. Enquanto a CBL opera com a mineração subterrânea, obtendo uma proporção de 84% de pegmatito (rocha de onde o lítio é beneficiado) para 15,6% de rejeito, a Sigma opta pelo método a céu aberto, que, segundo os especialistas, é mais barato, mas gera uma proporção de 94% de rejeito para 6% de pegmatito extraído. Essa diferença resulta em um consumo de terra 30 vezes maior no método a céu aberto. Por isso, enquanto a outra operadora trabalha com pilhas de estéril que ocupam cerca de 7 hectares, a Sigma pretende usar 200 hectares para erguer suas montanhas de rejeitos, transformando o que antes era um ecossistema rico em uma "paisagem de lua". 

Nas palavras de Klemens, a mineradora está “externalizando os problemas sociais e ecológicos”, deixando para a população e para o poder público o custo dos impactos na saúde física e psicológica dos moradores do entorno, duramente impactados pela mudança extrema na paisagem, pela poeira e pelo barulho inerente à atividade. 

O engenheiro de minas e professor da UFOP Hernani Mota de Lima não quis analisar especificamente o caso das empresas citadas na reportagem. Mas, de forma genérica, ele explicou a diferença entre os métodos a céu aberto e subterrâneo. A principal diferença entre as duas alternativas de exploração mineral está no impacto visual. “Para o público em geral, (o método a céu aberto) é feio. Em uma escavação grande, não se tira apenas minério, mas também estéril, para poder acessar o minério de forma mais segura. Essa quantidade de estéril que é tirada, ela tem que ser empilhada em outro local. Então, onde você tinha uma montanha, você cava um vale. E onde tinha um vale, você quase que faz uma montanha com o material estéril. Então, você muda de forma considerável a paisagem local”, pontua o especialista. 

Ainda conforme Hernani, além do impacto visível, a cava a céu aberto também afeta mais a população no entorno do empreendimento. “A chance de gerar poeira é maior, pois está mexendo com tudo a céu aberto. Se não existir um controle para mitigar a poeira, a comunidade mais próxima pode sofrer com o impacto. Além disso, há também o ruído das máquinas e explosões, que podem incomodar mais a comunidade do que o método subterrâneo”, complementa o professor. Entretanto, segundo o especialista, a escolha do método não depende somente de qual deles causa mais impacto ao meio ambiente ou de qual é mais “barato”. Também é preciso observar as características e a disposição do corpo mineral, o que influencia diretamente em qual a melhor forma de extraí-lo.

Por nota, a Semad e a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) informaram que o processo de ampliação da Sigma “encontra-se em análise técnica no órgão ambiental. “Conforme estabelecido pela legislação ambiental, a análise de alternativas tecnológicas e locacionais, incluindo métodos de menor impacto ambiental, é uma exigência obrigatória no processo de licenciamento, sendo considerada de acordo com o porte e classe do empreendimento. Em relação à alternativa tecnológica adotada, foram considerados aspectos técnicos do empreendimento, como a profundidade da jazida, tipo de ocorrência, geometria, relação estéril/minério e a presença de recursos hídricos subterrâneos. Esses fatores são determinantes para a definição do método de lavra, que pode ser a céu aberto, subterrâneo ou misto”, escreveu.

A Semad afirma ainda que, durante o processo de licenciamento, foram realizadas quatro vistorias ao local para subsidiar a análise técnica. 

Mineradora alega que lavra a céu aberto é mais “transparente”

Em julho deste ano a mineradora Sigma Lithium foi questionada pela reportagem e, em uma nota com mais de dez páginas, informou que “seguiu integralmente o rito processual” do licenciamento ambiental. Ela também apresentou uma série de motivos para ter optado pela lavra a céu aberto, que seria, na visão dela, a alternativa mais adequada do ponto de vista técnico. Na resposta, a multinacional chega a afirmar que o método tem “maior transparência” e “facilidade de fiscalização”.

Segundo a empresa, tratam-se de operações “visíveis à sociedade e aos órgãos reguladores”. “Dessa forma, ao avaliar todos os cenários técnicos, ambientais, sociais e de governança, a Sigma optou pelo modelo de lavra que representa o menor impacto no contexto geral, considerando o equilíbrio entre viabilidade econômica, sustentabilidade e responsabilidade socioambiental”, completou.

Conforme a Sigma, para além dos fatores geológicos e geomecânicos, os outros motivos que levaram à opção pela lavra à céu aberto foram:

A preservação da Área de Preservação Permanente (APP) do ribeirão Piauí;
Manutenção do modo de vida das populações ribeirinhas;
Possibilidade técnica e econômica de realizar duas lavras simultaneamente para que dois municípios recebessem a Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM).
Sobre o consumo hídrico, a Sigma argumenta que, em sua operação de 2024, foram utilizados 80 m³ por hora (1,9 milhão de litros por dia) captados do rio Jequitinhonha, considerando o funcionamento contínuo da planta. “Importante destacar que a maior parte desse volume é recirculado internamente, por meio de sumps, drenagens e sistemas de reaproveitamento, reduzindo significativamente a necessidade de captação externa no rio Jequitinhonha. Assim, o consumo real é muito inferior ao limite outorgado (150 m³/h), assegurando eficiência e sustentabilidade no uso do recurso”, disse a Sigma. A empresa alega que o consumo não sofrerá alteração caso a ampliação das atividades seja aprovada.  

Sobre a preservação do ribeirão Piauí, a Sigma informou que, desde a fase pré-operacional da empresa, ela realiza o monitoramento mensal da qualidade de sua água. "Todas as análises são conduzidas por empresas independentes, com Anotação de Responsabilidade Técnica (ART), e reportadas aos órgãos ambientais competentes, garantindo rastreabilidade e rigor técnico. Importante destacar que, antes mesmo do início das operações da Sigma, análises químicas e bacteriológicas já indicavam níveis elevados de coliformes fecais e altas concentrações naturais de ferro, manganês e alumínio — elementos comuns na litologia regional", concluiu.

(Com Simon Nascimento)