Eu era apenas uma criança quando tomei meu primeiro gol na equipe de futebol na época de colégio. As vozes de decepção do time fixaram-se dentro de mim, em um lugar aonde ninguém mais poderia ver ou tocar, lá dentro do meu inseguro e infante coração, silenciosamente caladas. Eu queria que pudessem confiar em mim. E doeu, como doeu. Afinal, eu errei e não chorei.
Era quase tarde de um sábado frio. Eu fazia aquela fumacinha com a boca soprando no vento. O forte cheiro do meu surrado roupão de incêndio me faz sempre lembrar de levá-lo para lavar em casa, mas eu sempre esqueço, afinal, num plantão de 24 horas a gente pensa em tudo, pensa na vida e na morte, no amor e na dor até nos números da Mega Sena, menos em comprar o tal sabão cheirosinho para lavar o uniforme. Ah, como eu gosto de deitar em um lençol com aquele cheiro bom.
Bom, era mais ou menos isso que se passava na minha mente enquanto retirava a minha calça, escorado na viatura, após um chamado de incêndio em um shopping. Eu já estava meio apressado porque me lembrei que deixei minha marmita fora da geladeira e queria voltar rápido para o batalhão, quando, como um soco seco e súbito, escuto um grito que se misturava com os barulhos dos carros, dos caminhões e do vento que descia a BR. Havia também o barulho de algumas maritacas, eu acho.
Não entendi bem o que acontecia, nem localizei de onde vinha esse som que, mesmo sem eu entender, já aguçava meus sentidos. Pensei novamente na marmita azeda e continuei a arrumar meus equipamentos quando, como numa poesia cheia de dor, ouvi em alto e bom tom o clamor:
- Bombeiro! Bombeiro! Socorro!
Meus olhos se voltaram para o outro lado da rodovia e vejo uma cena confusa, agitada. Uma mulher desconhecida se debatia no chão enquanto outras duas pessoas, também desconhecidas, tentavam segurá-la e acalmá-la, na beira da pista.
Eram seis faixas que eu precisava atravessar para chegar lá: 50 metros e uma dezena de ansiosos carros para contornar. Vale lembrar que, mesmo sendo goleiro na infância, tinha até uma certa habilidade de finta. Então tomei a decisão: fui driblando os carros, as motos, o vento, o ego.
Alguns segundos, cheguei até o passeio e disse: - O que está acontecendo aqui, gente?
A mulher que estava segurando a outra agitada, disse com a voz de quem quase chorava de nervoso:
- É minha irmã. Ela não tá bem. Me ajuda aqui, por favor, bombeiro!
Confesso: naquele momento eu não entendia o que estava acontecendo. Minha mente precisava interpretar tudo rapidamente. É minha função, caramba! Fui treinado pra isso e precisava fazer algo, mesmo que fosse uma conversa.
Pedi que a agitada moça, ainda sem nome, se sentasse. Ela acatou minha súplica: sentou-se, fechou-se. Agachei-me, firme, frio mas vivo, peguei em seus braços, olhei em seus olhos e disse:
- Olha pra mim!
Ela não me via, ou não queria me ver.
Estranho, eu visto a farda e desvisto de mim. Eu era apenas um capacete amarelo com uma roupa vermelha e laranja falante.
Ainda de frente para a chorosa mulher, olhei para o lado para conversar com sua irmã, tudo isso em poucos segundos. Foi quando, de repente, bem na minha frente, ela se levanta e dispara em direção aos veículos que desciam em alta velocidade.
O coração pulsou, a pupila dilatou, a adrenalina correu nas veias, meus sentidos se aguçaram. Numa desesperada súplica, sua irmã gritou:
- Minha irmã! Meu Deus!
Os carros iam e vinham, a sinfonia dos motores dava seu tom. O prelúdio da tragédia foi anunciado. Mas não, hoje não, pensei:
-Hoje vocês podem confiar em mim.
Disparei atrás dela embrenhando-me na rodovia. O primeiro carro passou bem perto dela: ela errou, eu desviei. O segundo carro freou e mudou de faixa. Ela errou, eu desviei. Na terceira faixa vinha o que poderiam ser seu fim.
Vi que ela direcionou seu corpo na certeza de bater de frente. Sua decisão havia sido tomada. Faltava apenas a minha: e decidi. Tirei, escondida no pó, guardada com dor, aquela criança que também chorou calado, como ela sempre chora. Pulei, defendi, não o gol, mas a vida daquela mulher.
O vento soprou em minhas costas. Vi a morte tocar meus ombros fazendo-me um indesejado convite. Neguei e disse:
- Hoje não, querida amiga, talvez noutro momento.
O retrovisor do veículo raspou em meus ombros e caímos no chão no acostamento da rodovia. O mundo fez silêncio. Eu a alcancei, chorei. Ou melhor, nós choramos.
Sua súplica suada e melada em meus ouvidos era como o pedido por um abraço, que lhe dei. No desespero, ela me deu um presente: uma mordida no antebraço que fez meu sangue escorrer. Talvez fosse ela se agarrando ao último fio da vida. Toquei sua pele, aproximei-me do seu ouvido e disse como quem diz para alguém conhecido:
- Você está comigo!
Internamente pensei:
- O goleiro não mais precisa chorar calado. A criança não mais precisa esconder a sua dor. Eu também sangro. Eu também sofro. Eu também vivo.