Na última vez em que o ex-empresário e professor de inglês José (nome fictício), de 62 anos, não suportou a frustração por estar desempregado e atolado em dívidas, ele recorreu ao crack para tentar aliviar a dor. Não deu certo. A primeira pedra queimada pelo idoso até trouxe certo alívio. Mas a segunda já não fez o mesmo efeito para o morador de Belo Horizonte: após dois dias na rua e o consumo de mais de 30 pedras, só restou a vergonha pela recaída em um vício que o acompanha há três décadas.

“Se eu pudesse voltar no tempo, nunca teria experimentado. Fui perdendo tudo por causa do crack. Sou divorciado. Todas as minhas relações se deterioraram. Ninguém tem muita esperança. Pensam que sou um caso perdido”, descreve. 

Ameaça silenciosa

A dependência química que assombra a vida de José na terceira idade é uma ameaça que cresce de maneira silenciosa entre a população idosa da capital mineira. O número de atendimentos a indivíduos com mais de 60 anos nos Centros de Referência em Saúde Mental - Álcool e Drogas (Cersams AD) cresceu 79% em 2021 na comparação com 2018, como mostra levantamento feito pela Secretaria Municipal de Saúde de BH a pedido da reportagem.

Não há estatísticas sobre o consumo de drogas lícitas e ilícitas entre pessoas mais velhas na capital, mas o crescimento da demanda por atendimento a dependentes preocupa, conforme alerta Janaína Soares, professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, da mesma instituição. “A gente observa o aumento do uso de crack e cocaína nessa população também. E isso tem a ver com a questão social”, avalia a especialista. 

Relação com a pandemia

Segundo a pesquisadora, reflexos da pandemia podem ter contribuído para que os idosos busquem refúgio em substâncias entorpecentes.

“O isolamento, além do luto pela perda de familiares e de amigos, podem gerar sentimentos de depressão, tristeza, ansiedade. A substância química acaba entrando na vida dele (do idoso) como uma forma de sentir prazer em meio a tantos problemas”, analisa Janaína.

A dependência química é multifatorial. Tem a ver com questões psicológicas, com a perda de funcionalidade física e também com questões sociais. Quanto menos relações sociais, maior a
vulnerabilidade para o consumo”, acrescentou a  pesquisadora da UFMG.

“Epidemia oculta”
Relatório do Conselho Internacional de Controle de Entorpecentes divulgado em 2021 classificou o uso de drogas entre idosos como “epidemia oculta”. “A falta de acompanhamento e informação significa que o uso de drogas entre idosos muitas vezes não é diagnosticado”, alertou o documento. 

Falta de dados é grande entrave

A falta de estatísticas sobre a população idosa que faz uso abusivo de drogas ainda é o principal entrave para a elaboração de políticas públicas que efetivamente combatam o problema. Em Belo Horizonte, por exemplo, a Secretaria Municipal de Saúde (SMSA) não soube informar quais são as drogas – além do álcool – mais usadas pelas pessoas da terceira idade que procuram atendimento nos Cersams AD. 

Sem dados, fica mais difícil atacar o problema, como admite o gerente da Rede de Saúde Mental da SMSA da capital mineira, Fernando Siqueira. “É necessário (levantar mais dados)”, afirmou. E ele acrescentou: “A própria literatura é muito falha com relação ao uso de outras substâncias, que não o álcool, por idosos”.

A conta não fecha
Muitos idosos buscam refúgio no uso de crack ou de cocaína por já não sentir no próprio organismo os efeitos do álcool com tanta intensidade, conforme observa a psicóloga Jennifer Miranda, que atende dependentes químicos na Promil Comunidade Terapêutica - Projeto Milagres, em Santa Luzia, na região metropolitana de BH . A especialista alerta ainda que a dependência química, muitas vezes, está associada também a ansiedade e depressão.