O Estado de Minas Gerais, a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) foram condenados pela Justiça Federal por diversas violações dos direitos dos povos indígenas Krenak pelo chamado "Campo de concentração indígena" criado em Resplendor, na região do Rio Doce, durante o período da Ditadura Militar no Brasil. Além dos órgãos, um capitão reformado da Polícia Militar (PM), que seria o responsável pelo Reformatório Agrícola Indígena Krenak, nome oficial do campo de concentração, também foi condenado.
A sentença foi proferida na última segunda-feira (13) pela juíza Anna Cristina Rocha Gonçalves, da 14ª Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais. Além do "campo de concentração indígena", as entidades também foram condenadas pela criação da Guarda Rural Indígena (GRIN) - ambos fatos ocorridos em 1969 - e pelo confinamento dos índios na Fazenda Guarani, em Carmésia, também no Rio Doce, no ano de 1972.
De acordo com a Justiça Federal, os órgãos foram condenados a realizarem, dentro de seis meses, uma cerimônia pública para reconhecer as graves violações de direitos dos povos indígenas, seguido de um pedido público de desculpas ao Povo Krenak, com ampla divulgação.
Além disso, a Funai deverá ultimar a conclusão do processo de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Krenak de Sete Salões, em Resplendor, também dentro de seis meses. O órgão federal deverá ainda, junto ao Estado de Minas Gerais, implementar junto aos Krenak, ações e iniciativas voltadas ao registro, transmissão e ensino da língua do povo, visando o resgate e preservação de sua memória e cultura.
Já a União foi condenada a reunir e sistematizar toda a documentação relativa às graves violações dos direitos humanos da época, disponibilizando-os na internet, em endereço específico para livre acesso ao público, ainda nos próximos seis meses.
Por fim, a sentença determinou o reconhecimento de existência de relação jurídica entre o chamado "capitão Pinheiro" e a União, a Funai e o Estado de Minas Gerais, que teria sido o agente público responsável pelos crimes.
O militar foi condenado a reparar os danos morais por meio de uma indenização revertida ao Fundo de Direitos Difusos em montante a ser fixado; à perda dos proventos de aposentadorias; perda de patentes, honrarias e postos militares; pera de funções e cargos públicos. Em caso de descumprimento das medidas, uma multa de R$ 20 mil foi estipulada para cada determinação não atendida.
A denúncia
A sentença foi proferida pela Justiça Federal após denúncia apresentada em 2019 pelo Ministério Público Federal (MPF) em Governador Valadares. O órgão pediu a condenação do capitão reformado e dos entes federais e estaduais pelos crimes de genocídio contra a etnia Krenak.
Segundo a denúncia do MPF, o policial é responsável por diversas violações aos direitos humanos praticadas contra os Krenak, com o objetivo de destruição do grupo étnico, no contexto da criação da Guarda Rural Indígena (Grin), da instalação de um presídio chamado de “Reformatório Krenak” e do deslocamento forçado para a fazenda Guarani, no município de Carmésia (MG), que também funcionou como centro de detenção arbitrária de indígenas.
"Nesses três episódios, ocorridos durante o regime militar, o Estado brasileiro praticou graves violações a direitos humanos contra os Krenak, povo indígena que ocupava terras situadas à margem esquerda do Rio Doce, no município de Resplendor, região leste de Minas Gerais. As violações levaram ao adoecimento psíquico de integrantes da etnia a partir de um processo de traumatização psicossocial coletiva. Também foram violados direitos culturais, reprodutivos e territoriais, dificultando nascimentos no seio do grupo e criando sérios obstáculos à reprodução física, social e cultural do grupo indígena", detalha o MPF.
Um detalhe destacado pelo órgão foi que, durante a solenidade de formatura da 1ª turma da Guarda Rural Indígena (Grin), realizada em Belo Horizonte, estavam presentes o então governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro, o seu secretário estadual de Educação, José Maria Alkmin – que fora vice-presidente da República entre 1964 e 1967 – e de outras altas autoridades federais. "Durante o desfile, foi exibido um índio dependurado em um pau de arara. A cena, que foi filmada, é a única registrada no Brasil que mostra, em um evento público, um ato de tortura", lembra a denúncia.
Ainda conforme o MPF, para o Reformatório Krenak foram enviados indígenas de mais de 15 etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país. No comando do Reformatório Krenak, Pinheiro administrou o reformatório e a ocupação militar das terras Krenak, sendo também o responsável pela remoção compulsória, em 1972, dos indígenas para a fazenda Guarani, a partir de uma permuta realizada com a PMMG, que era a proprietária da fazenda.
Lá, os indígenas eram aprisionados por diversos motivos, como embriaguez, manutenção de relações sexuais e saída não autorizada da terra indígena. No reformatório os índios eram submetidos a trabalhos forçados, tortura e maus tratos. Havia ainda no local uma espécie de solitária, que eles chamavam de “cubículo”, onde eram mantidos dia e noite com água pingando sobre eles, como forma de punição.
Para os procuradores da República Lilian Miranda Machado e Edmundo Antonio Dias, autores da denúncia, a intervenção militar conduzida pelo acusado sobre o território dos Krenak causou a destruição sistemática do modo de vida do grupo indígena, ocasionando a desagregação social e cultural desse povo.
“Percebe-se, portanto, que atuação incisiva do oficial reformado, diretamente ou por meio dos guardas da Grin e dos militares, todos a seu comando, deu-se com o objetivo nítido de controlar o comportamento dos índios Krenak, limitando seu direito de reprodução, de ir e vir e de cultuar suas tradições, na ânsia de destruir esse grupo étnico indígena, cuja extinção não ocorreu devido à enorme capacidade de resistência demonstrada pelos indígenas”, escreveram na denúncia os procuradores.
Depoimentos
A sentença trouxe alguns depoimentos de indígenas sobre o período. Confira alguns deles:
"Depois foi construído o presídio (Reformatório Krenak), sob responsabilidade do Capitão Pinheiro...se um militar queria uma índia, ela tinha que dormir com ele e o marido ficava preso. E isso aconteceu muitas vezes. O próprio Capitão Pinheiro vinha de vez em quando na aldeia Krenak e praticava estes atos de violência sexual contra as mulheres”
Índio Douglas Krenak
“O responsável pelo presídio era o Capitão Pinheiro, que ficava em Belo Horizonte, mas vinha para a área...Os policiais batiam muito nos índios”
Manelão Pankararu
”Lembra que há uns 40 anos chegou o Capitão Pinheiro, acompanhado de outros policiais, cabos, sargentos, soldados...Lembra do cabo Vicente (Antônio Vicente), que ficava na área cumprindo as ordens do Capitão Pinheiro...O Capitão Pinheiro mandava bater nos índios...Os presos trabalhavam durante todo o dia, de sete às cinco: os índios produziam e o Capitão Pinheiro ficava com toda a produção, que era vendida na feira”
José Cecílio Damasceno
“Não tinha juiz, não tinha advogado, não tinha Justiça, não tinha nada. O Capitão Pinheiro era quem decidia quem ia para a cadeia e quanto tempo ficava”
Dona Maria Júlia