Um mês da tragédia

'Capitólio era a paixão dele', diz filha de marinheiro vítima do desastre

Deslizamento de rocha nos cânions do lago de Furnas provocou a morte de dez. Piloto sempre falava que energia do local era ótima, lembra filha, de 22 anos

Por Lucas Morais
Publicado em 07 de fevereiro de 2022 | 03:00
 
 
 
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Na blusa com a foto do pai estampada, o nome escrito em letras garrafais da lancha atingida pelas rochas dos cânions no lago de Furnas, na região Sul de Minas: Jesus. Um mês após a trágica morte do marinheiro Rodrigo Alves dos Anjos, a dificuldade em lidar com tudo ainda é grande. Sentada em uma escada no fundo da casa da avó, na Colônia Santa Isabel, em Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte, a filha Milena Rodrigues dos Anjos, 22, recorda da paixão que o marinheiro tinha por Capitólio. Uma semana antes, a família comemorava no mesmo lugar o primeiro Natal depois da chegada da pandemia ao país.

"Há uns cinco anos, ele foi lá fazer um passeio com a minha mãe, os dois de moto. Fez amizade e por lá mesmo ficou. E sempre que vinha (para Betim), o tempo todo ele queria levar todo mundo. Onde chegava, falava de Capitólio, mostrava vídeo. Dizia que os cânions tinham uma energia muito boa, que sempre arrepiava lá quando entrava", revelou. Conhecido pela alegria no rosto e o bom-humor, restaram apenas as lembranças dos momentos vividos. "Nunca pensei que, aos 22 anos, fosse ao enterro do meu pai. Ele saiu para trabalhar, como fazia todos os dias, e nunca mais voltou. Antes de viajar, me deu um abraço tão forte, e eu não sabia que seria a última vez", contou.

A força para tentar amenizar tanta dor vem da filha, Maria Alice, que mesmo com apenas 3 anos, pergunta todos os dias sobre o Rodrigo. "Ela falou que não queria que o vovô virasse uma estrelinha, porque a estrelinha mora muito longe, e queria ele por perto. É muito duro falar que ele não vai voltar mais", disse. Experiente, o piloto era marinheiro fluvial de convés nível 3 e sempre teve paixão pelas embarcações. "Sei que a cidade é o ganha-pão de muita família, mas precisamos ter fiscalização. Nunca foi normal algo desse tipo acontecer", acrescentou sobre a tragédia, que provocou a morte de outras nove pessoas em 8 de janeiro deste ano.

Companheira do piloto ao longo dos últimos 25 anos, a esposa, Marileide Fátima Rodrigues, 37, fala com dificuldade sobre quem foi o Rodrigo. Todos os dias, quando acorda, pensa que o desastre foi um pesadelo, mas a realidade insiste em bater. "Já no Ano-Novo, eu falei com ele para voltarmos para Betim por conta das enchentes na região da represa, mas acabou que não deu tempo. Daria tudo para ter ele aqui de volta, e a gente fica sempre no 'se': se não tivesse ido, se não tivesse trocado de lancha", relatou, emocionada.

No dia do desastre, quando a história do Rodrigo e das outras duas famílias se cruzaram, o piloto resolveu trocar de lancha para levá-los aos cânions, roteiro que era muito aguardado por todos.

"Eles saíram em três lanchas para pegar as pessoas. Só que daria para fazer o passeio apenas em duas, então a outra retornou para buscar uma outra família. Como ele gostava de pilotar embarcações menores, resolveu ir com eles na lancha Jesus. Ele ainda falou na hora da troca para deixar ele ir com Jesus. Era aniversário de um deles e, por isso, foram direto para os cânions, onde iam cantar os parabéns, e pularam uma parte do roteiro", explicou Marileide, que morava com Rodrigo em Capitólio. 

No auge da carreira como piloto, Rodrigo tinha muitos planos com a esposa. E o principal era viajar o mundo. "Tudo que ele queria fazer na vida, ele conseguiu. Mas ainda tinha muita coisa pela frente. Queríamos comprar uma van. Ele sempre pensava nisso, até estava olhando uma geladeira pequena para adaptar no veículo. O sonho era aproveitar, conhecer lugares novos e trabalhar, sempre viajando", afirmou. 

Enchente histórica impediu velório

No mesmo fim de semana que Rodrigo perdia a vida em um dos locais que mais amava, a família vivia  outro drama: as enchentes históricas da bacia do rio Paraopeba deixaram casas tomadas por quase dois metros de água nas partes mais baixas da Colônia Santa Isabel. Entre elas, estavam as residências da mãe e da tia do piloto.

"Tivemos a confirmação por volta das 15h, mas não contamos para elas. Estávamos tirando as coisas de dentro para desocupar tudo. O irmão dele sabia, a filha também, só que não contamos, porque iria desestruturar (ss duas) mais ainda naquele momento que já era muito difícil", contou o primo, Thiago Flores, 36.

Apenas à noite, quando elas estavam em um local seguro, veio a notícia da morte. Junto com a tristeza profunda, as dificuldades insistiram em continuar até durante o enterro do Rodrigo. "Tivemos todo aquele drama de reconhecimento e liberação do corpo e, no cemitério, também foi muito complicado. A água chegou até a porta, não dava para entrar, e tivemos que abrir um muro na parte de cima. Foi preciso passar com o caixão por pasto, cerca e enterrar ele sem velório", lamentou.

Mesmo diante de tanta dor, a família conseguiu se unir para ajudar a comunidade a se reerguer: na casa da mãe do Thiago, eles passaram a receber doações de roupas, móveis e alimentos.

E foi a esse trabalho voluntário que a mãe do piloto, Zélia Caetano Alves dos Anjos, 71, passou a se dedicar desde a tragédia. Vizinha do imóvel, ela chega   ao local cedo, todos os dias, e só sai no fim da tarde. Nos fundos da cozinha, Zélia separava alguns mantimentos e pouco conseguia falar do filho em 27 de janeiro, quando a reportagem esteve no local.

"A última vez que ele se despediu de mim, disse que a pandemia estava passando e já podia me dar um abraço, que me amava demais. E eu falava com ele assim: mais do que eu, meu filho? Não tem jeito, não. Passamos o Natal juntos. Neste dia, meus filhos estavam tão felizes", lembra.

Sempre que Rodrigo retornava para Capitólio, Zélia gostava de preparar com muito carinho alguns quitutes. "Eu pegava e fazia broa e carne de panela. Colocava naquelas latinhas, e ele levava. Ainda falava comigo que deu para comer durante o mês todo. O Rodrigo gostava muito de rir, brincar com tudo", recordou.

Para os amigos, Digo

Entre os amigos, ele era conhecido como "Digo". É o que conta Thomas Nedson, 37, que cresceu com o piloto. "A última vez que eu conversei com ele pessoalmente foi no Natal, e ele falou que era muito feliz, que estava em um lugar em que todos que são ricos querem ir, e a pessoa que não tem uma situação financeira tão boa guarda dinheiro para estar lá, e que ele estava onde todo mundo quer estar", relatou.

 

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