No lado direito da cabeça de Flávio Xavier dos Santos, 31, é possível sentir, com as pontas dos dedos, a bala de revólver calibre 38 alojada em seu crânio desde 2 de abril de 2012, herança de um período sombrio de sua vida. O ex-gerente do tráfico de drogas levou cinco tiros no bairro Jardim Vitória, na região Nordeste da capital, e, depois de ficar por três dias em coma induzido, ser submetido a várias cirurgias e permanecer quatro meses no hospital, decidiu que aquela não era a vida que queria e tomou outro rumo. “Naquele momento, eu me vi morrendo por nada. Não acreditava que iria sobreviver. Só conseguia pensar que aquele caminho em que eu estava, onde você mente para você mesmo, alegando que vai ganhar muito dinheiro com o tráfico – e eu ganhei bastante – sempre leva a um fim que todo mundo conhece: cadeia ou cemitério”, lembra.

Em casa, entre uma sessão e outra de fisioterapia para voltar a andar, Santos decidiu voltar a estudar por conta própria e foi aprovado no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2014. No mês passado, ele se formou em serviço social, e sua principal meta, agora, é ajudar as pessoas, principalmente aquelas que estão no mesmo caminho tortuoso que quase o levou à morte.

“Não tinha nem o ensino médio completo. Usei meu tempo livre em casa para estudar e fui aprovado no Enem. Tive uma nota razoável e consegui uma bolsa de 50% do Prouni (Programa Universidade para Todos). Eu já tinha na cabeça que o curso com que eu mais me identificava era serviço social”, disse Santos. A colação de grau e o baile serão no próximo mês.

Virada. A grande motivação para a mudança foi um presente que recebeu do irmão advogado, quando ainda estava no hospital: a autobiografia do ativista político estadunidense Martin Luther King. “Ele foi um líder negro que lutou pelos direitos civis. Quando li a história do cara, vi que meu papel dali em diante seria este: lutar por uma sociedade mais justa e igualitária e contribuir de uma forma propositiva”, diz o assistente social.

Durante todo o ano passado, Santos estagiou no Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), na Vara da Criança e do Adolescente, que fica no Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA). “Trabalhei no setor que acompanha jovens em medida socioeducativa do meio aberto, que é a prestação de serviço à comunidade ou a liberdade assistida”, detalha Santos.

No estágio que fez no TJMG, ele conta que trabalhou em uma vara do seu interesse, da criança e do adolescente em conflito com a lei. “No meu trabalho de conclusão de curso, eu falei da criminalização da juventude e dos índices de letalidade desses jovens, que é muito alto. Eu me enxergava neles”, disse.

Antes de fazer estágio no CIA, Santos já havia passado por lá duas vezes, quando era adolescente, por porte de arma de fogo e por ter se envolvido em um assalto. Aos 19 anos, foi preso por porte ilegal de armas.

“Quando falo que os cinco tiros foram bons para mim, as pessoas acham estranho. Mas me tornei outra pessoa e tenho paz de espírito. Pude fazer faculdade e amigos de verdade”, afirma. “Pode-se dizer que foram os cinco tiros que mudaram a história da minha vida para um lado positivo”, conclui.

Atualmente. Com o diploma na mão desde o último dia 6, Flávio Xavier procura emprego e estuda para concursos: “A sensação é de vitória, pois a gente sabe que, no Brasil, pouca gente tem essa oportunidade”.

Experiência ruim ajudou em estágio

Flávio Santos conta que é de uma família monoparental, sustentada apenas pela mãe. Ele acredita que, quando ela saía para trabalhar, ele ficava vulnerável às “coisas erradas” do bairro Nova Cintra, na região Oeste de BH, onde passou a adolescência.

Segundo Santos, para realizar os atendimentos durante o estágio que fez no Tribunal de Justiça, reuniu a teoria da faculdade de serviço social e a prática de sua história de vida: “Entendia muito bem o que aquela mãe ou aquele adolescente estava passando”.

Orgulho da família

Flávio Xavier Santos conta que hoje é motivo de orgulho para a família. Para a mãe dele, a dona de casa Tânia da Conceição Xavier, 55, é como se o filho tivesse renascido. “Só o fato de agora eu poder me deitar na cama e dormir sossegada, sem ficar preocupada com ele na rua, já é uma bênção de Deus”, relata a mãe. Segundo Santos, a mãe passava a noite em claro esperando o telefone tocar, à espera de notícia ruim. “Quem mais sofre é a família”, diz ele.

Tânia se orgulha muito do filho não só por ele ter retomado os estudos, como por ter optado por serviço social na faculdade. “Ele decidiu fazer esse curso para ajudar as pessoas”, destaca. Atualmente, Santos se prepara para um concurso no Tribunal de Justiça e estuda seis hora por dia. Não faço mais parte do tráfico desde 2012 e pretendo fazer a vida valer a pena”, finaliza.

Poder e dinheiro foram isca para iniciação no tráfico

A iniciação de Flávio Xavier dos Santos no tráfico de drogas começou com pequenos favores a traficantes do Nova Cintra, na região Oeste da capital. Ele ganhava alguns trocados para fazer compras para eles, por exemplo. “Eu tinha 15 ou 16 anos. Influenciado por más companhias, comecei a praticar pequenos furtos perto do bairro, mas tudo com a cabeça muito inocente. Quando fiz 17 anos, minha mãe resolveu se mudar de lá. Para ela, me tirando dali, eu talvez poderia ter outra perspectiva. Aos 22 anos, acabei me envolvendo com o tráfico, mas em outro patamar. Eu já era o gerente, controlava o dinheiro, a mercadoria, tudo. Era muito dinheiro”, conta.

“Eu vivia na farra, muita festa praticamente de segunda a segunda: bailes, pagodes e viagens para a praia. O tráfico oferece esse lado do poder, que pode ser atrativo, mas acaba te jogando para as cobras. Ali, você não tem amigos”, diz.

Santos relata que sempre foi correto na administração do comércio de drogas. “Mas, nessa vida, não adianta você ser certo. Eu achava que comigo não iria acontecer nada, mas uma pessoa cresceu o olho em mim e fez o que fez”, conta o ex-gerente do tráfico, sem dar detalhes da tentativa de homicídio que sofreu. Ele diz apenas que o autor dos disparos foi morto algum tempo depois pela própria organização criminosa da qual o rival fazia parte, uma espécie de “queima de arquivo”.

“Se tivesse escapado dos tiros e continuado naquela vida, com certeza teria acontecido outra vez. Seria morto ou estaria preso”, diz o assistente social. “Cada pessoa pode construir seu caminho e realizar seus sonhos”, ensina.