Desamparo

Grávidas que doavam bebês viviam em casa de acolhimento ao lado do hospital

Mulheres que deixavam seus filhos para a adoção viviam em contexto de vulnerabilidade social e econômica

Por Natália Oliveira, Laura Maria e José Vitor Camilo
Publicado em 08 de maio de 2022 | 08:01
 
 
 
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Apesar de não existir mais há vários anos, é possível reconstituir um pouco do que era a Obra Social Santa Mônica por meio das lembranças das mulheres que lá viveram e pelo resgate de informações oficiais. No site do Hospital e Maternidade Therezinha de Jesus consta que, em 1955, foi construído um anexo ao hospital para funcionar como uma lavandaria e que o espaço foi alugado para Obra Social Santa Mônica “destinando-se também ao abrigo de mães desamparadas, sem famílias constituídas, que tinham permissão para trabalhar no local”.

As gestantes que moraram no local contam que a obra social funcionava como uma casa onde elas moravam e trabalhavam. Havia mulheres de várias cidades de Minas, mas principalmente de municípios vizinhos a Juiz de Fora. Eram gestantes em situação de vulnerabilidade e que a gravidez não era aceita pelos pais ou patrões das casas onde elas viviam e trabalhavam. Essas mulheres contam que a obra social funcionava na rua São Mateus, bem ao lado do hospital. Havia até mesmo um portão que dava livre acesso à maternidade e por onde as gestantes abrigadas na obra social passavam na hora do parto.

As mães que lá viveram ainda carregam muitas mágoas da obra social. Na lembrança delas aquele é o lugar onde foram exploradas tendo que trabalhar, e o pior de tudo: elas se sentiram coagidas a doar seus filhos. Na memória de Manoelina Rosa restaram poucas lembranças da casa, mas suficientes para trazer tristeza ao coração. “Lá era uma espécie de orfanato para ajudar as mães grávidas, mas eu considerava que era escravidão, porque a gente tinha que trabalhar muito na lavanderia que cuidava das roupas da maternidade. Era muito sofrido. Chegavam lençóis sujos de sangue e nós, grávidas, ficávamos bem abaladas de ver aquilo”, relembra. 

Já Maria das Graças, se lembra com detalhes dos momentos em que passou na Santa Mônica. Ela se recorda até dos nomes de colegas e funcionárias do local. “A gente usava um vestido amarelo e não podia receber visita. Quando saíamos para consulta no hospital, íamos sempre acompanhadas de funcionárias da obra social. Eu acho que a gente trabalhava lá para pagar nossa estadia, mas era muita coisa. A gente tinha que ajudar a separar e dobrar roupa. Além da maternidade, a gente também cuidava de roupas particulares por lá”, se recorda.

Mães eram incentivadas a doar os filhos e as adoções já ficavam “armadas”

Para Maria das Graças, a obra social e o hospital funcionavam como uma “máfia de doações de crianças”. “Aquilo ali eu acho que era ilegal porque era gente da mesma panelinha. A dona da obra social era esposa do dono do hospital e tinha uma outra diretora que era casada com um juiz que autorizava as adoções. Ninguém ia ao Fórum para assinar nada. Os papéis já iam direto para a maternidade. Hoje todas essas pessoas já são falecidas”, explica. 

Ela conta ainda que em nenhum momento as mães eram incentivadas a ficar com os filhos. “Eles diziam que já tinham arrumado alguém para doar e que nós éramos jovens e não iríamos conseguir marido com filho. Eu fui uma das que mais demorou para aceitar fazer a doação”, lembra. Ela conta que tinha apenas 16 anos e precisou que os pais também assinassem para que ocorresse a doação. 

Manoelina ressalta que as mães eram incentivadas a doar os filhos. “Já era tudo organizado com a maternidade, que incentivava a doação. A gente, sem recurso, acabava doando. Depois nunca mais tivemos notícias. Tem mães que souberam que os filhos foram para outros países. A gente não sabia nada de quem adotava”, contou. 

Um pai adotivo que morava em Juiz de Fora relatou que ficou sabendo sobre as adoções que ocorriam na maternidade por meio de uma vizinha, que era enfermeira do hospital. Foi com essa informação que ele e a mulher foram até a Therezinha de Jesus e adotaram os filhos. “Era preciso colocar seu nome em uma fila de espera e dizer se queria menino ou menina. Depois você ia lá e buscava a criança”, contou. 

Por outro lado, Rogério Campanha, que foi doado para uma família no Rio de Janeiro, acredita que as adoções não foram forçadas. Isso porque ele conta que os pais biológicos foram em duas ocasiões até Juiz de Fora com a informação de que as mães queriam doar suas crianças. Segundo ele, nas duas viagens, ambas as mães biológicas desistiram da doação, e o casal precisou voltar para o Rio de Janeiro sem a criança nos braços. Somente na terceira ida à cidade da Zona da Mata é que os pais dele conseguiram adotá-lo. “Por causa disso, acredito que as doações não foram forçadas”, afirma. 

Ainda assim, ele reconhece que o processo não era legalizado, uma vez que, ao chegarem em casa, os pais conseguiram uma certidão de nascimento de que o menino teria sido parido pela mãe biológica dele.

“Adoções à brasileira" são impasse para encontrar os familiares biológicos 

A advogada e presidente da Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), Silvana do Monte Moreira, explica que a legislação brasileira de adoção passou por mudanças significativas, especialmente após a Constituição de 1988 e a sanção do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990. 

“As crianças e adolescentes adotados com base no ECA têm direito a conhecer sua realidade biológica, podendo requerer o desarquivamento do processo de adoção aos 18 anos (maioridade civil), ou até mesmo antes, por pedido fundamentado”, detalha. 

No caso de pessoas adotadas antes das novas normas, em caso de processo legal, por meio de ação judicial, é possível desarquivar o processo para verificar as informações sobre a família biológica. 

“Contudo, se for um procedimento irregular, erradamente denominado de ‘adoção à brasileira’, que é quando ocorre a prática do crime previsto no artigo 242 do Código Penal, será praticamente impossível essa localização. A opção é recorrer a grupos especializados nessa busca, como a Associação Brasileira de Pessoas Adotadas (Adotiva Brasil)”, complementa a advogada. 

Hospital alega não ter mais registros das adoções

Carregando as malas e o sonho de conhecer a mãe biológica, Alécio Aparecido da Silva, de 52 anos, saiu do Estado de Pernambuco, onde mora atualmente, e foi até a maternidade Therezinha de Jesus, em Juiz de Fora, nos anos de 2001 e 2006. Ele tentou conseguir alguma informação sobre sua adoção, mas foi sem sucesso. “Me disseram que antigamente era tudo anotado em um livro, e agora o sistema é digitalizado. Se eu quiser qualquer informação, eu tenho que entrar na Justiça”, conta.

Outro que tentou informações na maternidade foi o pai adotivo Luiz Rodrigues Barbosa, aposentado, de 78 anos e que atualmente mora em São Paulo. Ele queria informações sobre as mães biológicas dos dois filhos que ele e a mulher adotaram no hospital. “Falaram que perderam todos os arquivos e que só têm informações de 15 anos para cá”. As mães biológicas que procuram os filhos também procuraram a maternidade e não tiveram sucesso em conseguir informações sobre as adoções. 

Procurado este ano pela reportagem, o Hospital e Maternidade Therezinha de Jesus alegou, por meio de uma nota, que as adoções ocorreram em datas “anteriores ao período de gestão da atual direção”, que teve início em 2005.  “Quando os atuais administradores da instituição assumiram os seus cargos, já não havia nos arquivos por ela mantidos documentos relacionados às adoções de que se trata, razão pela qual não é possível à atual gestão responder aos questionamentos. É dado saber, no entanto, que a ‘Obra Social Santa Mônica’ encerrou as suas atividades há anos, bem antes de 2005, não sendo possível afirmar, por outro lado, se os seus idealizadores mantiveram arquivados os registros das referidas adoções”, diz a nota enviada. 

Por fim, a maternidade afirma ainda que “não se tem notícia do exercício de qualquer ‘influência’ para que as mães entregassem seus filhos à adoção”.

O que diz a prefeitura da cidade

Por nota, a Prefeitura de Juiz de Fora pediu que a reportagem procurasse o hospital e informou que “apesar do HMTJ ser 100% SUS, ele não é gerido pela prefeitura. A Secretaria de Saúde não tem acesso aos registros da maternidade”. 

Investigações 

A Polícia Civil não tem nenhuma investigação em andamento sobre a obra social e as doações que ocorriam na maternidade. Para que haja alguma investigação é necessário que seja registrado boletim de ocorrência sobre o fato. 

O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) informou que na promotoria de Justiça de Defesa da Criança de Juiz de Fora não há nenhuma investigação relacionada aos fatos e que se os envolvidos quiserem fazer alguma denúncia devem procurar a 10ª Promotoria de Justiça de Juiz de fora, pelo telefone (32) 3249-5910 ou para a Ouvidoria do MPMG, pelo telefone 127. 

Procurado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) informou não ter localizado processos envolvendo descoberta de mãe biológica e a maternidade em questão. Ainda segundo o tribunal, por se tratar de processos entre as décadas de 60 e 80, o mais provável que eles tenham tramitado exclusivamente em papel e já estejam baixados. 

“Sugerimos uma consulta à Coordenação do Arquivo Permanente (Coarpe) do TJMG pelos telefones (31) 3447-2205/5174 e pelo e-mail coarpe@tjmg.jus.br. Na Coarpe é possível solicitar pesquisas pelo tipo de processo ("adoção"), pelo nome das partes, dos adotandos ou por outros dados, como um recorte histórico ou por comarca”, orienta. 

O processo de adoção no Brasil 

Como funcionava uma adoção antigamente?

Entre 1957 e 1965, muitas mudanças aconteceram no processo de adoção no Brasil. Mas na década de 60, a lei permitia a adoção de menores de até 7 anos que fossem abandonados, órfãos, cujos pais declararam por escrito a intenção ou perderam a guarda e, até mesmo, que eram filhos naturais “reconhecidos apenas por mãe incapacitada de prover a sua criação”. Até 1990, não havia qualquer medida para garantir que estas crianças pudessem conhecer a realidade biológica. 

Como funciona o processo de adoção agora? 

Foi somente em 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que a participação da Justiça na celebração do ato de adoção foi determinada. O documento garantiu ainda que crianças e adolescentes adotados tivessem direito de conhecer a sua realidade biológica, permitindo o desarquivamento do processo de adoção aos 18 anos ou, até mesmo antes, por meio de pedido fundamentado. O ECA determinou ainda que hospitais e maternidades arquivem por 18 anos os prontuários de parto. 

Como as pessoas devem fazer para conseguir os dados da maternidade?

Nos casos de adoções ocorridas antes do ECA, se foram legais, é possível ter acesso às informações por meio de ação judicial. Para isso, é preciso desarquivar o processo para a devida verificação dos dados. Contudo, naquela época tinham muitas adoções irregulares. Nestes casos, é praticamente impossível localizar dados oficiais dos pais biológicos. Existem grupos de pessoas adotadas e que ajudam nessa busca, como a Associação Brasileira de Pessoas Adotadas (Adotiva Brasil).

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