Era década de 1940, quando, com vestes bem alinhadas e chapéu na cabeça, Abigail Alves Rodrigues seguia a pé de casa para o cinema. Ao fim da sessão, uma passada rápida na avenida Afonso Pena para praticar o “footing”. “Os rapazes ficavam encostados, e as moças passavam de lá para cá. Isso era normal na época, tinha na praça da Liberdade, no Floresta, no centro entre a praça Sete e a Tupis”, explica ao notar desconhecimento quanto ao termo que ela viu cair em desuso ao longo das últimas décadas. Nascida em Diamantina, em maio de 1918, quando Belo Horizonte tinha só 21 anos de inauguração, Abigail acompanhou muitas mudanças na capital, para onde se mudou aos 7 anos com a família.

Mais do que uma prática deixada no passado, o footing representa para ela a descoberta do amor. Foi em uma dessas idas e vindas que Abigail conheceu o marido, falecido em 1993. Da união deles, uma família de quatro filhos, oito netos e cinco bisnetos se formou. Um dos bisnetos, inclusive, nasceu no dia 7 de dezembro, quando Abigail recebeu a equipe de reportagem com o sorriso aberto, uma vontade enorme de distribuir abraços (uma das grandes faltas que ela sente durante a pandemia) e uma história de vida de 103 anos para contar. 

Em mais de três horas de entrevista, das inúmeras lições deixadas por aquela experiente mulher, as que se destacaram foram as de que ser feliz e ajudar o próximo rejuvenesce. Cuidar de plantas e fazer doces saborosos também. Assim como contar piadas, bater um bom papo, tomar uma taça de vinho diariamente, cochilar depois do almoço, colecionar amigos e ter fé, nas pessoas e em Deus. Pelo menos, para a senhora Abigail tem dado certo.

Foi fazendo trabalho voluntário na Paróquia de Nossa Senhora Mãe da Igreja, no bairro Vila Paris, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, há 40 anos, por exemplo, que Abigail não deixou a vida passar. “As pessoas costumam me falar que não acreditam que eu tenho 103 anos, e eu respondo que nem eu acredito”, conta com uma gargalhada daquelas que fazem quem está por perto rir junto. Sorriso que ela repete inúmeras vezes ao longo da conversa, o que traz a sensação de que o tempo passa diferente ao lado dela, uma hora corre como 15 minutos. 

Abigail não é saudosista nem lamenta pelas mudanças a que teve que se adaptar em um século. Aprendeu a lidar bem com o computador, usa o celular e a internet como seus aliados na comunicação com os filhos. Mas, quando pensa no que foi Belo Horizonte e o que é atualmente, ela não tem dúvida: “A cidade era muito melhor antes”, diz ao recordar que a capital era mais arborizada e as distâncias, menores, o que possibilitava passeios a pé. 

O bonde como transporte coletivo também é citado por ela como uma das alterações mais significativas na cidade. A substituição do veículo pelos ônibus mudou a rotina dos belo-horizontinos. “A gente pegava bonde, parava em algum lugar e andava o resto do caminho. Eu e minha mãe íamos à capela de Padre Eustáquio assim. Parávamos na estação no centro e caminhávamos até chegar. Era muito bom”, conta. Depois, os ônibus permitiram chegar a locais mais distantes e fizeram com que novas vias fossem abertas.

Mas, mesmo antes dessa facilidade de locomoção, a juventude belo-horizontina não deixava de se divertir. “A gente ia de bonde até certo ponto e ia passear, fazer piquenique na Serra, que se chamava Caixa de Areia, ia no Sion, que se chamava Fim do Mundo. Tinha uma hora dançante no Clube Belo Horizonte. Mas eu passeava pouco porque minha mãe era muito enérgica”, conta. 

Foi da mãe que ela herdou a religiosidade que a impulsiona a fazer o bem. Nos horários livres, Abigail faz artesanatos para serem vendidos em bazares feitos pela obra de caridade da paróquia. O dinheiro arrecadado é doado para creches e pessoas carentes. “Começamos o trabalho com poucas senhoras, agora temos muitas pessoas que participam, inclusive jovens”, diz.