Tragédia de Mariana

Sobreviventes de Bento Rodrigues são convidados a viver em um canteiro de obras

Com apenas 71 das 162 casas do distrito concluídas, Renova convidou famílias a ocuparem os imóveis em janeiro de 2023

Por Rayllan Oliveira*
Publicado em 19 de outubro de 2022 | 14:55
 
 
 
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MARIANA. Um local ainda em obras. Essa é a realidade do novo distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, na região Central de Minas Gerais, que se prepara para receber as famílias atingidas pelo rompimento da barragem do Fundão, da Samarco. Com a conclusão de 71 das 162 casas atualmente contratadas, os atingidos foram convidados pela Fundação Renova a ocuparem os imóveis a partir de janeiro de 2023. Um convite indigesto para quem aguarda há sete anos pela retomada da rotina e do convívio social interrompidos por um mar de lama que engoliu o distrito no dia 5 de novembro de 2015.

"A Renova quer levar essas famílias para um canteiro de obras. Como fica a condição dessas famílias vivendo em local assim?", questiona o membro da Comissão de Atingidos, Mauro Marcos da Silva. Para ele, a ocupação do novo Bento Rodrigues feita em etapas, sem a conclusão total das obras, descumpre acordos e gera incertezas nas pessoas atingidas. "Parece que eles querem colocar a gente apenas para fazer um marketing", desabafa.

Nesta quarta-feira (19), a Fundação Renova e a Prefeitura de Mariana assinaram um termo de compromisso que tem como objetivo garantir o funcionamento de serviços essenciais, como o tratamento de água e esgoto, transporte público, limpeza urbana, iluminação e segurança. A parceria busca criar condições para que as pessoas possam planejar e organizar o processo de mudança.

O acordo foi oficializado em uma cerimônia que contou com a presença do prefeito de Mariana, Ronaldo Alves Bento (PSB); do presidente da Renova, André de Freitas; do diretor de infraestrutura da Renova, Carlos Tannus; e do gerente geral de reparação integrada e sustentada, Luiz Ferraro. Representantes dos atingidos compareceram de surpresa ao evento e se recusaram a sentar à mesa quando convidados. 

"Mesmo que tardiamente, estamos percebendo que as coisas se encaminham para resolver", comemora o prefeito de Mariana. Ele definiu a conclusão de parte das obras como um momento "épico e de alegria". Satisfação que não é compartilhada pelos atingidos que compareceram a cerimônia.

"Cadê o bar da Sandra?", questiona a Sandra Dometirdes Quintão. Ela, que atualmente vive em Mariana, em um espaço alugado pela Renova, está com a sua casa já em obras no novo distrito de Bento Rodrigues. A pergunta que interrompeu a solenidade é um questionamento diário dela que perdeu a sua única fonte de renda em 2015. "Meu bar completava 15 anos quando foi destruído pela barragem", relembra.

A nova casa de Sandra Quintão não conta com um espaço para o bar. Ela disse que, por vezes, perguntou aos representantes da Fundação Renova sobre o espaço comercial e que não obteve respostas. "Eles quiseram até me pagar, mas esqueceram que aqui corre sangue na veia. Eu quero trabalhar, quero a vida que eu tinha", desabafa.

O processo de reconstrução do novo Bento Rodrigues, que teve início em 2016, com a compra do terreno, contou com a participação dos atingidos. Segundo o diretor de infraestrutura Carlos Tannus, foram diversos encontros para conseguir reproduzir o que era exigido pelos atingidos.

"Os projetos das casas foram individuais. Eles partem das exigências das pessoas e daquilo que elas contam que tinham. Alguns ajustes são feitos, mas tudo é discutido com elas", explica. Além das 71 casas, a Fundação Renova também finalizou as obras de quatro bens coletivos, sendo eles: a Escola Municipal de Bento Rodrigues, dos Postos de Saúde e de Serviços, além da Estação de Tratamento de Esgoto. Até o final do ano, a expectativa é de que 121 casas estejam aptas para receber os moradores. 

Incertezas e insegurança

O retorno para as casas do reassentamento de Bento Rodrigues é marcado por incertezas e inseguranças. Famílias temem pelo convívio de crianças e adolescentes em um ambiente com obras e com a circulação de um número grande de trabalhadores, maior até que o de pessoas residentes nas novas casas. Atualmente, cerca de três mil homens trabalham diariamente nas obras. "Tem muitos homens e a gente não sabe como eles são, não os conhecemos. É muito arriscado. E nós moradores seremos minoria", alerta a agricultora familiar Marinalva dos Santos.

O cenário de incertezas é marcado também pelo descumprimento de algumas das demandas coletivas. O acordo feito entre a Renova e as famílias de atingidos prevê a garantia de água bruta para cuidar da plantação e da criação no assentamentos. No entanto, a falta de informações gera dúvidas sobre como esses serviços que garantiam o sustento de diversas famílias terão continuidade.

De acordo com o gerente geral de reparação integrada e sustentada da Renova, Luiz Ferraro, existe um programa para a retomada destas atividades. Essa ação, segundo ele, é dividida em duas partes que contam com o pagamento de recursos para que os moradores possam executar as obras necessárias ou a implantado será feita pela própria Renova. "Estão inclusos todos os itens, como horta, pomar. Os atingidos também terão uma assistência técnica durante alguns anos", pontua Ferraro.

Marinalva Salgado, que também trabalha com a produção de geleias feitas com pimenta biquinho, também mantém essa preocupação. Diferente de onde morava, a nova casa não tem espaço para o cultivo de hortaliças. "Isso é uma preocupação. A gente tinha a nossa área particular. Hoje nada disso é certo", conta.

Para um dos representantes dos atingidos, Mauro Marcos da Silva, as pessoas não são informadas da real situação das obras e de como a rotina do velho Bento será retomada. "Quem vive do plantio, por exemplo, não sabe como vai ser. Essa água será tarifada no futuro? A gente não tinha essa despesa", alerta 

Novo Bento Rodrigues

• Novembro/2015
Rompimento da Barragem do Fundão.

• Maio/2016
Fundação Renova e Atingidos participam do projeto de escolha do terreno para a construção do reassentamento. O processo foi feito por votação e o terreno escolhido foi o preferido de 93% das 223 famílias participantes.

• 2017
Licenciamento do reassentamento de Bento Rodrigues em Mariana e em Minas Gerais.

• 2018
Aprovação do projeto urbanístico, obtenção de licenças e alvarás, homologação das diretrizes do reassentamento e implantação do canteiro de obras.

• 2019
Início das obras de infraestrutura.

• 2020
Conclusão do posto de serviço e de saúde e das cinco primeiras casas. Redução do contingente de trabalhadores e adoção de reuniões remotas com atingidos por causa da pandemia da Covid-19.

• 2021
Conclusão da Escola Bento Rodrigues, da Estação Tratamento de Esgoto e das primeiras 47 casas.

• 2022
Conclusão da infraestrutura e foco na construção das casas e bens coletivos.

* Repórter viajou a convite da Renova

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