Embaixo de três placas de cimento que compõem uma das sepulturas mais simplórias do cemitério do Bonfim, na região Noroeste da capital, está guardado um mistério. Na quadra 18, bem próximo a túmulos de famílias tradicionais, como os Savassi, e que resguardam personalidades afamadas, como os ex-governadores de Minas Raul Soares e Olegário Maciel, estaria enterrado um hermafrodita suicida do fim do século XIX.
Somente em agosto do ano passado a existência do jazigo veio à tona, a partir da pesquisa da arqueóloga Luísa de Assis Roedel, que fez sua monografia de graduação sobre o Bonfim. Até então, ninguém dali tinha conhecimento da história, nem mesmo a guia oficial que apresenta a necrópole aos visitantes e também estuda o lugar, Marcelina Almeida.
A descoberta aconteceu “meio por acaso”, segundo a arqueóloga, durante uma visita ao local com o orientador da monografia. O primeiro impacto se deu ao perceberem o que estava escrito na lápide da sepultura, com letras gastas, mas ainda passíveis de leitura: “Herculine Bardin, hermafrodita do final do século XIX que, diante da exigência médica de eleger entre um de seus sexos, se suicida”.
A lápide, no entanto, contém incorreções descobertas pela pesquisadora. Herculine Barbin (e não Bardin) realmente foi hermafrodita e se suicidou, mas o fato aconteceu em 1868, bem antes da abertura do cemitério, que se deu quase trinta anos depois (1897). Barbin é um nome conhecido no meio da filosofia graças ao empenho do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) em estudar seu caso. Ele encontrou o diário de Barbin e o publicou em um livro chamado “O Diário de um Hermafrodita”.
Para a arqueóloga, o corpo estar enterrado em uma quadra repleta de sepulturas opulentas também dá ao fato contornos ainda mais obscuros. “Isso eu acho muito representativo, pois pode ter sido uma maneira de dar visibilidade a alguém que é marginalizado diariamente na sociedade”, analisa.
Opostos. Essa suposta visibilidade contrasta com outra característica igualmente intrigante: a solidão de uma sepultura feita apenas para uma pessoa. “Naquela época era comum todos os membros da família serem enterrados juntos. Mas esse está sozinho, como se ele fosse uma vergonha”, reflete Luísa.
Para esse quebra-cabeça se montar completamente, ainda faltam muitas peças, as quais Luísa pretende revelar durante estudos para sua dissertação de mestrado. “Ainda preciso pesquisar uns arquivos da cidade para desvendar isso, mas a simples existência da lápide já traz representatividade para os hermafroditas”.