Cinquenta anos e cinco meses separam o momento em que o primeiro receptor de um transplante de órgão no Estado adentrou a sala de cirurgia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG) do instante em que médicos da mesma unidade de saúde entregaram a Valentina Souza Pereira, 1, parte do fígado do pai dela, o engenheiro Alexandre Lopes Pereira, 39. Apesar da distância temporal entre os casos, ambos são marcos na história médica mineira – o de Valentina é o primeiro transplante intervivos pediátrico.

Instituição centenária em BH, o Hospital das Clínicas tornou-se pioneiro em transplantes de rim, fígado e córnea no Estado e até hoje segue realizando feitos históricos. No caso de Valentina, o procedimento tornou-se necessário após uma piora drástica no estado de saúde dela, em maio deste ano. A menina é portadora de uma doença genética que ataca pulmões, fígado e pâncreas, e, quando ela tinha apenas 2 meses, apareceram os sintomas. “Ela era muito amarelinha, e as fezes dela eram brancas”, conta a mãe Helânia da Costa Pereira, 30, moradora de Ribeirão das Neves, na região metropolitana.

Doação de órgãos cai 15% durante pandemia, e saúde de pacientes se agrava

Quando descobriu que o transplante de fígado era a única chance para a filha, a família levou Valentina para São Paulo. Porém, com a pandemia da Covid-19, foi obrigada a retornar para BH, exatamente quando o estado de saúde da bebê piorou. “Quando voltamos, os médicos do HC falaram que ela não podia esperar mais. Ela chegou a entrar na fila de doação de órgãos, só que encontrar um fígado para a idade e o tamanho dela ia demorar. Foi quando eles falaram que o doador poderia ser o pai”, relata Helânia.

Em uma corrida contra o tempo, médicos do HC-UFMG descobriram que Pereira era compatível com a filha. A cirurgia, inédita em Minas, durou cerca de oito horas. Pai e filha foram operados no mesmo momento para garantir que o órgão permanecesse pouco tempo fora do corpo. “O implante de fígado em uma criança tão pequena tem um grau de complexidade muito alto”, explica Leandro Navarro Amado, médico coordenador do Grupo de Transplantes de Fígado da unidade.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Cinquenta anos e cinco meses separam o momento em que o primeiro receptor de um transplante de órgão no Estado adentrou a sala de cirurgia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG) do instante em que médicos da mesma unidade de saúde entregaram a Valentina Souza Pereira, 1, parte do fígado do pai dela, o engenheiro Alexandre Lopes Pereira, 39. . . Apesar da distância temporal entre os casos, ambos são marcos na história médica mineira – o de Valentina é o primeiro transplante intervivos pediátrico. . . Confira a matéria completa de Lara Alves em otempo.com.br. . . Imagens: Luna Normand (HC), Alex de Jesus/O TEMPO e Alexandre Mota (O TEMPO) Edição: Denver Oliveira . #transplante #alta

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Hoje, após Valentina ter se recuperado, o médico acredita que o HC está abrindo portas para outros pacientes. “O caso atesta que temos condições de transplantar crianças em Minas Gerais sem que elas precisem viajar para isso e que podemos também receber pacientes pediátricos de outros Estados”, conclui Amado.

Pioneirismo

O primeiro transplante de órgão feito em Minas Gerais ocorreu em dezembro de 1969. Um homem de 32 anos recebeu um rim da irmã, de 40, no Hospital das Clínicas da UFMG.

Paciente com HIV também sobreviveu

Valentina Souza Pereira, 1, não é a única a passar por um transplante inédito em Minas Gerais feito pelo HC-UFMG neste ano. Em fevereiro, o hospital implantou pela primeira vez na história do Estado um fígado em um portador de HIV. O estado de saúde do homem, de 55 anos, era considerado grave em função de um diagnóstico de cirrose e câncer no fígado. O transplante em pacientes portadores de HIV não costuma ser indicado porque a toxicidade dos medicamentos é considerada alta para eles, o que reduz a chance de sobrevivência.

“O HC é pioneiro no Estado na assistência às pessoas portadoras do vírus”, esclarece a médica Andrea Maria Silveira, superintendente do Hospital das Clínicas da UFMG. O homem submetido ao transplante em fevereiro já recebeu alta médica e está em casa.

Câncer no fígado e diagnóstico terminal

Dezessete anos antes do transplante pediátrico feito em Valentina, Areta Oliveira à época com 22 anos recebeu um pedaço do fígado do próprio irmão em uma cirurgia no HC-UFMG muito parecida com a da bebê e seu pai. O procedimento cirúrgico da jovem ocorreu em fevereiro de 2003 e trata-se do primeiro transplante intervivos adulto feito em Minas Gerais. Após o transplante, Areta formou-se na faculdade, se casou e ganhou duas meninas nascidas de parto normal contrariando o prognóstico recebido quando descobriu um câncer no fígado que só poderia ser curado se ela recebesse um novo órgão. O irmão que doou a ela uma parte do próprio fígado também recuperou-se tranquilamente da cirurgia. 

“Quando você descobre um câncer sendo bem jovem, a primeira coisa que você pensa é que você vai morrer. Eu procurei outras opiniões e todo mundo era unânime de que não tinha tratamento, nem quimioterapia ou radioterapia que me curasse. Quando me ofereceram o transplante inédito, entendi que a a única coisa que ia me proporcionar a possibilidade de me manter viva”, detalha. À época, a fila de transplantes em Minas Gerais não seguia uma ordem de prioridade, mas de chegada. “Se eu fosse entrar na fila de transplantes, teria que esperar até um ano e meio. Como o tumor já estava bem grande, eu não tinha esse tempo”, relembra.

Além do drama de encontrar um doador compatível para ser submetido a uma cirurgia inédita, a família de Areta precisou ir à Justiça para obter uma autorização para que o hospital pudesse realizar o transplante. “Na época, não era permitido fazer esse tipo de transplante em Minas Gerais, então tivemos que abrir um processo na Justiça. Quando conseguimos uma liminar favorável, comecei a procurar dentro da família um doador. Meu irmão foi compatível”. 

Até hoje, Areta mantém um acompanhamento médico no HC e, agora em julho, descobriu que talvez seja necessário um transplante de um órgão inteiro. “Eu sempre sofri com problemas na via biliar. Hoje estou com um estreitamento sério e os médicos estão pensando se será necessário um re-transplante. Mas, durante todos esses anos, vivi uma vida normal”. Diante do susto de talvez precisar de uma nova doação, ela relembra as histórias que encontrou nos corredores do hospital.

“Eu nunca deixei de pensar que poderia precisar de um novo órgão. Quando você está no HC, você tem muito convívio com pessoas que já foram transplantadas e com outras que estão à espera de um órgão. É muito angustiante porque você vê a pessoa ali, definhando, ela vai piorando e nada do órgão aparecer. Agora que posso precisar de um novo transplante, é como se eu revivesse em mim o que já vivi em muitas histórias durante tantos anos no HC”. 

Em média, o Hospital das Clínicas da UFMG realiza 30 transplantes de fígado. “Nós fizemos 24 em 2018, 32 no ano passado e de janeiro até essa quinta-feira (16) fizemos 23. Acreditamos que esse ano chegaremos a 40 transplantes de fígado. Claro, tudo depende da oferta de órgãos”, declara o dr. Leandro Navarro Amado.

Mini-entrevista com dra. Maria da Consolação Vieira Moreira

Cardiologista da área de transplantes há mais de 30 anos e professora-titular da Faculdade de Medicina da UFMG, Maria da Consolação Vieira Moreira começou em 2006 o Programa de Transplantes de Coração do HC em parceria com o dr. Carlos Camilo Smith Figueiroa – responsável pelo primeiro transplante de coração feito no Estado, o primeiro em uma mulher no Brasil. O grupo é responsável por cerca de 350 transplantados até hoje, sendo todos os procedimentos feitos com recursos do SUS. A médica conheceu o cirurgião responsável pelo primeiro transplante de coração do mundo e participou da história do procedimento no país. Segundo ela, Minas Gerais é responsável por 14% dos transplantes cardíacos de todo o país. 

Qual a história do transplante de coração no Brasil?

Cinco meses depois do primeiro transplante de coração feito no mundo pelo dr. Cristian Barnard na África do Sul, o nosso grande cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini da USP fez o primeiro transplante de coração no Brasil no famoso João Boiadeiro, um lavrador que viveu 28 dias após a cirurgia e morreu de pneumonia. Após os primeiros procedimentos, os resultados não foram muito bons e a maior parte das equipes médicas pararam de transplantar coração. Na época não havia medicamentos adequados para rejeição, ninguém sabia como monitorar o paciente. Ainda era muito experimental. Essa é a história.

O que mudou? 

Até 1970, 166 transplantes de coração foram realizados no mundo. O problema era que a sobrevida dos pacientes era muito baixa. No primeiro ano, a taxa de sobrevida era de 30%, número que caía para 11% no segundo ano. Ou seja, os resultados eram muito ruins porque não se conhecia sobre rejeição, sobre imunossupressão. Este é o período histórico do transplante. Bom, na década de 1980, foi descoberto um medicamento chamado ciclosporina que revolucionou os transplantes de órgãos sólidos no mundo. A partir dele, tornou-se possível controlar a rejeição. Graças a alguns centros médicos que não desistiram do procedimento, como de Stanford, novos conhecimentos foram gerados sobre o transplante. A partir de 1980, cresceram as taxas de sobrevida. Atualmente, a sobrevida chega a mais de 80% no primeiro ano após o transplante. A vida média de um transplantado de coração está entre 10 e 13 anos, um feito extraordinário se considerarmos que um paciente que requer transplante está no leito da morte.