Morrer à espera de um órgão não é uma realidade tão comum em Minas Gerais, principalmente após uma mudança na legislação que determina a ordem da fila por critérios como a gravidade do estado do paciente e a compatibilidade sanguínea e genética com o doador. Mas, entre abril e junho deste ano, em meio à pandemia do coronavírus, houve queda de 15% no volume de órgãos recebidos pelo MG Transplantes, se comparado com o primeiro trimestre de 2020.
Transplantes inéditos não param de ocorrer em MG mesmo em meio à pandemia
O drama é acentuado pela quantidade de órgãos que são descartados no caso de o doador ter testado positivo para a Covid-19 ou ter tido contato com algum infectado. Entre essas histórias está a de um paciente atendido pelo médico Renato Bráulio, coordenador do Grupo de Transplante de Coração do Hospital das Clínicas da UFMG (HC-UFMG), que perdeu duas oportunidades de receber um coração em decorrência da situação. “Esse paciente esteve prestes a ser operado duas vezes no último mês e meio. Nós fizemos todos os exames e descobrimos que ele era compatível com corações de doadores diferentes. Entretanto, pouco antes da cirurgia, saiu o resultado de Covid-19, e descobrimos que aqueles corações não poderiam ser doados”, conta Bráulio.
Segundo ele, o paciente não estava tão mal quando entrou no hospital, mas, sem poder receber o transplante, piorou, e seu estado de saúde agora é muito grave. “É um cenário horrível e que reduziu muito o volume de doações”, detalha o médico.
Apesar do quadro crítico, a situação ainda é melhor em Minas Gerais se comparada com a de outros Estados brasileiros. De acordo com o diretor geral do MG Transplantes, Omar Lopes Cançado Júnior, a captação de órgãos está próxima da constatada em 2019. “Até o primeiro trimestre deste ano, nós estávamos conseguindo aumentar em cerca de 15% o volume de doações captadas em relação ao ano passado. Quando começou a pandemia, agora no segundo trimestre, o número caiu esses 15% de aumento, e estamos próximos da marca do ano passado”, explica Cançado Júnior.
Existem duas causas principais para a redução, cita o diretor geral do MG Transplantes: além dos pacientes que tiveram coronavírus ou contato com quem teve, caiu o número de acidentes e de traumas, o que é positivo.
“Ainda é muito cedo para falar sobre aumento de óbitos na fila de espera por transplante. Mas nós acreditamos que, se as doações continuarem a diminuir, diminuirão também os transplantes e, consequentemente, haverá um aumento da taxa de mortalidade na fila. É importante que as pessoas expressem durante a vida o desejo de doar e que a gente possa contar com a solidariedade das famílias que decidem doar órgãos após a morte de um ente querido. Essa é a única forma de diminuir a espera”, conclui.
Cirurgia é suspensa, e fila só aumenta
O tempo de espera por uma córnea, segunda maior fila de transplante em Minas Gerais, tornou-se indeterminado após o começo da pandemia. Considerado um procedimento cirúrgico eletivo (não urgente), o transplante de córnea está suspenso por recomendação do Ministério da Saúde. Em razão da medida, houve queda brusca na captação de doações de córnea em todo o Estado.
“Nós podemos falar em uma queda em torno de 70% a 80% em relação ao primeiro trimestre do ano. A retomada desses transplantes depende da evolução da pandemia. Estamos conversando com o Ministério da Saúde para prever quando poderemos retomar os transplantes eletivos. Ainda não há definição, e estamos na fase mais aguda da pandemia aqui, no Estado”, esclarece o médico Omar Lopes Cançado Júnior, diretor geral do MG Transplantes.
Atualmente, 1.396 mineiros aguardam na fila por um transplante de córnea. Relatório da ABTO publicado em abril deste ano aponta que 47 crianças integram o grupo.
Coração traz alívio em meio à pandemia
Apesar da redução no número de doações de órgãos em Minas Gerais durante a pandemia, Dílcio Geraldo Moura, 55, conseguiu um coração em junho, após nove meses na fila de transplante. Ele se preparava para dormir quando recebeu a ligação urgente do médico, alertando que havia aparecido um doador e que a cirurgia teria que ser feita nas horas seguintes, no Hospital das Clínicas da UFMG.
Ele saiu de Belo Vale, na região Central de Minas, onde mora, e poucas horas depois estava na capital mineira. “Fiquei com um pouquinho de cisma por conta do coronavírus, mas precisava fazer a cirurgia. Não vi nada, acordei só na hora que a anestesia passou”, relembra ele, sobre a cirurgia. Há cerca de dez anos, Dílcio começou a perceber inchaços frequentes nas pernas e um cansaço forte durante o expediente como operador de máquinas industriais.
“Eu não podia comer direito porque a barriga inchava; se tomasse muito líquido à noite, eu não conseguia dormir. Fui ao médico e comecei a tratar, mas foi agravando até que me falaram que só o transplante resolveria. Comecei a avaliação para entrar na fila há dois anos, e demorou mais ou menos um ano para os exames serem todos liberados. Depois de nove meses, consegui. Me sinto muito bem, sem cansaço”, relatou. Dílcio Geraldo recebeu alta médica na última quarta-feira (15) e pôde voltar para casa, em Belo Vale.
Fila
Documento da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), publicado em 30 de abril deste ano, indica que 792 adultos e 27 crianças entraram para a fila de transplantes à espera de doação de órgãos em Minas Gerais nos primeiros três meses deste ano.
Óbitos
Desse total, 62 pacientes (7,5%) não aguentaram esperar pelo órgão e morreram. A demanda é maior por rins e córneas, seguida de fígados e corações.
Balanço
Hoje, cerca de 4.440 mineiros aguardam na fila por um órgão e tecido. “As maiores filas são para rins e córneas; são 2.870 pessoas esperando por um rim e outras 1.396 por um transplante de córnea”, pontua o diretor geral do MG Transplantes, Omar Lopes Cançado Júnior.