Casey Affleck resolveu apostar muitas fichas em "A Luz no Fim do Mundo", longa-metragem em cartaz na cidade: além de assumir as vestes do personagem principal, o irmão do também ator Ben Affleck assina, aqui, roteiro e direção. Em cena, em um tempo futuro no qual uma pandemia dizimou praticamente todas as mulheres da face da Terra, um homem vaga com sua filha pré-adolescente, Mag, tentando fazê-la se passar por um homem (no caso, Alex), às custas do cabelo cortado curtíssimo e de roupas nas quais qualquer traço que possa ser associado ao universo feminino acaba sendo veementemente descartado.
No início, os dois são localizados em uma floresta, acampados. No entanto, o espectador logo percebe que pai e filha têm um código em comum: um alerta vermelho. Trocando em miúdos, ao menor sinal de perigo, os dois rapidamente se esgueiram floresta afora, munidos de suas mochilas, recheadas por um kit básico de sobrevivência.
Tal alerta é disparado principalmente diante da aproximação de tipos suspeitos, embora não fique claro o que o pai teme que esses homens possam de fato fazer. A mãe da garota - interpretada por Elizabeth Moss ("Mad Man" e "Handmaid's Tale") - aparece em flashbacks, em um dos quais ela levanta parte da lateral da blusa para mostrar, em seu dorso, as marcas da evolução da doença a qual ela tem total consciência que a vitimará, como de fato ocorre.
No decorrer da itinerância desse pai viúvo com sua filha, os dois se deparam com casas abandonadas e, em dado momento, decidem fincar bandeira em uma propriedade que um dia pertenceu à família dele, hoje ocupada por três homens - tal qual em "Ensaio Sobre a Cegueira", de José Saramago, aqui, em dado momento da praga, as casas foram deixadas para trás e agora, num mundo sob uma nova estruturação, as noções de propriedade se dissolveram.
Nesse mundo errante e distópico, porém, ao contrário de "Bird Box", que centra-se muito na ação, "A Luz no Fim do Mundo" se ancora mais na relação pai e filha e, mais que isso, nos diálogos. Neste ponto, vale ressaltar a escolha acertada de Affleck por Anna Pniowsky, que vai além de o rosto (belíssimo) da menina ter traços que a fazem assumir o papel de menino (ao menos, até um certo ponto).
No mais, vale ressaltar a cena que abre o filme, que, apesar de longa, contém o subtexto que acaba permeando toda a narrativa filmíca. Nela, dentro da barraca, e sob uma luz cálida e bruxuleante, o pai narra à filha uma versão singular da lenda da arca de Noé, na qual uma raposa macho toma a frente da ação que visa salvar as espécies do dilúvio iminente. Essa versão, no curso da história, acaba sendo solapada, sendo o protagonismo por fim dado a quem, mesmo atuando na coxia, com discrição, detém de fato a força nessa história.
Com belas locações (as filmagens aconteceram no Canadá), boas atuações e um roteiro interessante, "A Luz no Fim do Mundo" revela-se um filme se não inesquecível, merecedor da atenção do espectador em suas quase duas horas de duração.