“De primeiro não usava negócio de coberta nem nada”. Com sua fala simples, Takwara Pataxó, mulher indígena, mais conhecida como Dona Nega, desfia memórias de quando a rede de dormir – objeto que inspirou o vídeo “Rede de Tucum” da artista Arissana Pataxó –, reinava soberana. A obra, que traz o depoimento de Takwara, a única detentora do conhecimento sobre a confecção de rede a partir das folhas da palmeira tucum, é apresentada na mostra “Vaivém”, em cartaz a partir desta quarta-feira (11) no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), na praça da Liberdade.
Com mais de 300 trabalhos, a exposição, com curadoria de Raphael Fonseca, presta homenagem a uma peça recorrentemente associada à ideia de brasilidade – ainda que, muitas vezes, estereotipada. Com larga presença na arte e na cultura nacional, a rede sustenta um imaginário complexo e abrangente, o que é justamente o foco da mostra já vista por mais de meio milhão de pessoas – somando-se o público de São Paulo, Brasília e Rio.
Com as peças de 141 artistas, “Vaivém” demonstra que a rede permeia obras de nomes tanto modernos, a exemplo de Tarsila do Amaral (1886-1973), Djanira da Motta e Silva (1914-1979) e Candido Portinari (1903-1962), quanto de contemporâneos, como Tunga (1952-2016), Hélio Oiticica (1937-1980), Ernesto Neto, Adriana Aranha, Dalton Paula e o coletivo Opavivará!, entre outros.
Além desses, Fonseca também chama atenção para outros artistas mais recentes – alguns descendentes diretos de povos originários, como Arissana Pataxó e Denilson Baniwa. O segundo, inclusive, vai participar da Bienal de Sydney (Austrália), a ser inaugurada no dia 14. O curador pontua que o gesto praticado por esses artistas é potente e tem expandido a iconografia em torno dessa temática.
“Nesses últimos cinco anos, nós estamos vendo esses artistas também se valendo da imagem da rede para ampliar as narrativas, a partir de outros lugares de fala. Eu acho até que demorou muito tempo para isso acontecer, e finalmente está se abrindo espaço para um processo de institucionalização dos artistas indígenas. Isso já aconteceu há muito tempo nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália. E acho que aqui não é só uma onda, não, mas algo que veio para ficar”, comenta Fonseca.
Nesse amplo universo de proposições, Fonseca mapeia perspectivas por meio de seis diferentes núcleos: “Resistências e permanências”, “A rede como escultura, a escultura como rede”, “Olhar para o outro, olhar para si”, “Disseminações: entre o público e o privado”, “Modernidades: espaços para a preguiça” e “Invenções do Nordeste”. O primeiro, por exemplo, reforça a relação da rede com a cultura ameríndia. “Antes da invasão da América pelos europeus, não havia rede na África, na Europa nem na Ásia”, frisa o curador.
Fruto de uma pesquisa de doutorado realizada durante quatro anos, “Vaivém” nutre-se de um vasto repertório histórico. Isso contribui para que o visitante perceba o modo como o objeto passou a fazer parte do cotidiano do Brasil colonial, servindo não só aos indígenas, mas aos europeus, até ser relegada no século XIX, com a chegada de dom João VI.
“Com a vinda dele, o Brasil passou por um processo de europeização. A intenção da Corte Portuguesa era desenvolver um processo, como chama o autor Norbert Elias, ‘civilizatório’. O europeu chega aqui, acha isso tudo aqui uma grande loucura, um lugar selvagem, e tentar logo urbanizar, construir igrejas. E, nesse processo, pouco a pouco, a rede começou a ser vista como uma coisa do passado, que não era mais tão contemporânea, moderna”, explica Fonseca.
Instalações, como “Rede Social”, do Coletivo Opavivará! – montada no pátio do CCBB –, contudo, intervêm nesses circuitos e questionam determinadas visões. Se a rede, então, passou a ser vista como algo obsoleto ou restrito a uma região do Brasil, nessa obra ela é tomada como uma “tecnologia” de ponta, capaz de aproximar pessoas, compartilhando um mesmo espaço configurado por oito redes coloridas e costuradas, formando um só tecido. “Ali as pessoas são convidadas a deitar, namorar, rolar, ler e até fazer suas selfies para as redes sociais”, ri em seguida, Fonseca.
Por fim, “Vaivém” reforça o curador, busca ressignificar a imagem em torno das redes, que, do século XIX em diante, também foram associadas à preguiça. Não à toa, estão reunidos alguns exemplares da revista em quadrinhos “Zé Carioca”, em que o personagem está sempre deitado numa dessas peças. Macunaíma, protagonista do romance homônimo de Mário de Andrade (1893-1945) – revisitado na mostra em instalação de Ana Miguel –, também passava horas refestelado numa rede antes de se deparar com o ritmo alucinante de São Paulo.
“Nós percebemos como, nessa passagem para a modernização, a rede é tomada como algo que se opõe ao trabalho. Então, ela entra como símbolo da preguiça. E, por extensão, ela passa a ser associada muito ao Nordeste, que para uma certa visão hegemônica do Sudeste, não é uma região que se caracterizaria pelo trabalho, como São Paulo geralmente é descrita. A mostra também propõe desconstruir essas visões”, conclui Fonseca.
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A exposição “Vaivém” permanece em cartaz desta quarta-feira (11) até 18 de maio, no Centro Cultural Banco do Brasil (praça da Liberdade,
450, Funcionários). Visitação: De quarta a segunda-feira, das 10h às 22h.
Entrada gratuita.
Nesta quarta, o curador da mostra Rafael Fonseca vai realizar uma palestra, às 20h, no Teatro II do CCBB.