Com certo desdém e charme de roqueiro com fama de mau, que ainda cabe bem em coletes e pulseiras de couro meio James Dean, sem que esses trajes lhe pareçam ridículos e ultrapassados, Erasmo Carlos diz que os dias são todos iguais na pandemia. Eram quase 20h de quarta-feira quando ele pegou o telefone para mais uma entrevista nesta semana cheia de compromissos com a imprensa.
Erasmo atende a todos com bom humor e simpatia, e a agenda apinhada se justifica: neste sábado (5), ele completa 80 anos, e, mesmo que diga que é só mais um dia, o aniversário do artista, que deu os primeiros passos do rock no Brasil e que há décadas é nome onipresente na música brasileira, tem de ser celebrado. Erasmo é daqueles personagens que se entrelaçam com a própria história do cancioneiro nacional. Impossível passarmos alheios a essa data.
Neste 5 de junho, ele entra para o time de Roberto Carlos e Bob Dylan e se torna “oitentão”. “Não achei que viveria tanto. Tenho muito orgulho de fazer parte dessa geração, que aparece de 200 em 200 anos”, ele afirma. “Mas, para mim, é mais um aniversário, mais um dia. É sábado-feira, domingo-feira, e vida que segue”, completa o Tremendão, bem a seu estilo.
As comemorações serão comedidas, sobretudo em tempos de pandemia. Ele diz não fazer muitos planos para hoje, mas uma reunião virtual com a família é certa. “Não tenho muitos planos para sábado. Vamos fazer um encontro pelo Zoom com meus filhos e netos, minha mulher (Fernanda Passos) mandou fazer um bolinho. O bolinho tem 12 pedaços”, brinca o compositor, futuro bisavô de uma garotinha.
Erasmo está recluso em seu apartamento na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Recentemente, o compositor se reuniu com a banda para gravar um documentário para o Globoplay. Só assim para interromper um hiato de um ano e quatro meses sem tocar com os músicos que o acompanham. Foi emocionante, ele ficou em lágrimas; Erasmo, que já tomou as duas doses da vacina contra a Covid, morre de saudade de estar na estrada: “Esse tesão eu nunca vou perder. Gosto de chegar nas cidades, parar para comer nas churrascarias de beira de estrada, comer queijo coalho”.
Além dos 80 anos, ele tem outro motivo para comemorar. Recentemente, o músico anunciou a cura definitiva de um câncer no fígado, descoberto há quatro anos. Quando o assunto é a vontade de fazer música, Erasmo levanta a voz em tom de proclamação e faz questão de dizer: “Claro, bicho! Se eu parar de fazer música, estou fodido. Ela é o ar que eu respiro”. Esse respiro presente na vida do cantor há tanto tempo continua se renovando. Talvez seja esta uma das maiores características do Tremendão: o espírito jovem, que nada tem a ver com idade.
É um atributo inerente ao homem e ao artista. Por isso, não é de se espantar que ele esteja trabalhando em novos projetos com Supla, que mandou a música, e Erasmo ficou com a missão de fazer a letra, e com o rapper Emicida, parceiro de Alaíde Costa no próximo disco da cantora carioca.
“Procuro ser atual, sou um cara antenado. O novo me fascina, não sei se é coisa de signo”, comenta o geminiano. Erasmo conta que ouve rádio, vê TV, passeia pela internet e está viciado em séries das plataformas de streaming e nas playlists que tem criado no Spotify. Uma delas tem “seiscentas e tantas músicas”.
Ele diz que ouve de tudo: rock, balada, mambo, calipso, samba, chá-chá-chá, e por aí vai. “Todos os assuntos me interessam, tudo é informação para mim. Sou observador da vida humana. Gosto de assistir ao ‘Big Brother’ para ver o comportamento das pessoas, vejo novela. Tudo me interessa: a natureza, as mazelas... Absorvo tudo como informação, boto no liquidificador e bebo o suco disso”, pontua o cantor.
‘Vejo preconceitos e ódio. Isso me impede de ser feliz’
Por dentro, com a alma atarantada, como nos versos do rock rollinstoniano “Sou uma Criança, Não Entendo Nada”, Erasmo acompanha e recebe as últimas notícias sobre as questões políticas e sociais “de boca aberta, estarrecido com tanta ignorância”. No entanto, ele ainda acredita nas pessoas, mas não esconde sua decepção.
O mundo de hoje não é aquele com o qual ele sonhou e imaginou nos anos 70. “Vejo preconceitos, egoísmo e ódio, bicho. Eu tinha tudo para ser completamente feliz, mas isso me impede de ser. Não posso ser feliz sabendo dessas mazelas. Como cidadão e artista, sofro muito com essas coisas”, pondera.
O cantor ainda guarda muito vivos os conselhos que sua avó materna lhe deu certo dia. Ele incorporou aqueles ensinamentos como uma maneira de se tornar um ser humano melhor: “Primeiro, junte-se aos bons que será um deles. Depois, boa romaria faz quem em sua casa fica em paz e, por último, ame o semelhante como a você mesmo. São coisas com as quais eu me identifico e sigo na minha vida”.
Nesses 80 anos, foram muitas e muitas as vezes em que ele se confrontou diante do espelho. Entre erros e acertos, alegrias e dissabores, o cantor fica contente quando faz uma breve retrospectiva. “Sou orgulhoso do que fiz. Fico me analisando e me acho um cara legal. No fim das contas, sou um homem do bem”, ele pontua. Erasmo Carlos é casca dura, mas também é um poço de amor. E faz questão de distribuí-lo.
Do menino de 8 anos para o homem de 80, o que ele diz conservar é o amor que sua mãe, Maria Diva, lhe deu. “Guardei tudo, peguei tudo e não deixei nada escapar. Só quero semear. O amor verdadeiro é aquele que você entrega sem querer nada em troca. Você entrega e pronto”, ressalta o aniversariante do dia, já no fim da última entrevista daquela quarta-feira.