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Grande dama do teatro mineiro, Wilma Henriques completa 90 anos

A atriz, que despontou como apresentadora na TV Itacolomi, construiu sólida carreira nos palcos, em montagens emblemáticas

Por Patrícia Cassese
Publicado em 15 de fevereiro de 2021 | 03:00
 
 
 
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"Não é para qualquer um, não", brinca Wilma Henriques, sobre as 90 primaveras que completa no dia de hoje. "Vai ter bolo, vai ter discurso... Nós vamos cantar", diz ela, em um vídeo enviado ao Magazine por uma de suas grandes amigas e colegas, Magdalena Rodrigues, presidente do Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões do Estado de Minas Gerais (Sated). Na verdade, embora a grande dama do teatro mineiro já tenha recebido a primeira dose da vacina contra a Covid-19 (por pertencer ao grupo de idosos que moram em uma instituição de longa permanência), a ida de uma equipe de reportagem até ela, neste momento, ainda seria uma iniciativa extremamente arriscada. Daí, a gentileza de Magdalena. A pandemia do novo coronavírus, vale dizer, impediu também que o plano inicial dos colegas para comemorar a data - com direito a carreata - fosse executado. 

"A gente queria promover um grande encontro, presencial, mas seria arriscado não só para ela, como para os demais moradores da instituição. Então, meio a contragosto, resolvemos fazer uma live, a qual ela vai estar acompanhando de lá pelo (pela plataforma) Zoom", diz Jair Raso, nome à frente do Teatro Feluma. No palco, conduzindo tudo, estarão os já citados Magdalena e Raso, além de Carluty Ferreira, amigo de fé, irmão camarada e braço direito de Wilma Henriques. "Os colegas gravaram depoimentos curtos, contaram casos.. E também vamos exibir um programa da Rede Minas sobre ela", diz ele, referindo-se a nomes como Rômulo Duque, Jota Dângelo, Wilma Patrícia, Mamélia Dornelles, Eid Ribeiro, Pedro Paulo Cava e muitos outros. Para  consolidar tudo, até um grupo de whatsapp foi constituído em torno da data. "Ao fim, já tinha mais de 80 participantes", diz Magdalena.

Afastada dos palcos já há alguns anos, Wilma Henriques é um desses casos raros de unanimidade. Todos se dobram diante de seu talento, exaltam a militância avant la lettre pela categoria e o fato de ter optado por permanecer em Minas, na contramão dos vários colegas que, à época, foram tentar a sorte no eixo Rio-São Paulo. "Wilma teve oportunidade (de ir), mas fez a opção pessoal de permanecer aqui (para ficar junto à mãe, Esmeralda). Se tivesse ido, certamente hoje estaria elevada, em nível nacional, à estatura de Walderez de Barros, Fernanda Montenegro e Marília Pêra. Por isso também merece esse grande carinho, além do seu amor pelo teatro, que é contagiante", diz Raso. Dilson Mayron, coordenador do Sindicato dos Produtores de Artes Cênicas de Minas Gerais (Sinparc) e da Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, completa: "Como a Fernanda Montenegro e Marilia Pêra são para o Brasil, Wilma é para Minas... e para o Brasil!  De fato, a primeira dama do teatro. Sua performance em peças como ' A Prostituta Respeitosa', 'Ensina-me a Viver' ou 'Fala Baixo, Senão eu Grito', são marcos. Ela é uma unanimidade. E completar 90 anos, com saúde, que maravilha. Com uma cabeça jovem ainda. Wilma é uma mulher incrível". 

Nascida em Conselheiro Lafaiete, no dia 15 de fevereiro de 1931, filha única, Wilma Henriques debutou em 1959 na telinha, apresentando e produzindo o programa feminino "Espelho", na extinta Itacolomi. Por lá, ficou até 1962, depois migrando para o teatro. Foi nesta época, aliás, que, junto a Lady Francisco (1935 - 2019) e Wilma Patrícia, fundou o Moram, Movimento de Reabilitação dos Artistas de Minas Gerais. "Foram elas que tomaram a frente para proteger a categoria", frisa Magdalena, lembrando que, na época, os artistas locais começavam a ser preteridos em função dos atores do Rio e São Paulo, já que a Itacolomi era subsidiária da Tupi.

No teatro, Wilma Henriques colecionou sucessos e reconhecimento. "É uma atriz que vai da comédia à tragédia, passando pelo clássico, indo para o drama...", exalta Jair Raso, citando, em particular, a performance dela em "Fala Baixo, Senão eu Grito" ("montagem que realmente a lançou"), texto de Leilah Assumpção, com produção de José Mayer e direção de Eid Ribeiro;  e "A Prostituta Respeitosa", do obra de Jean Paul Sartre  (1905-1980) - aliás, reza a lenda que ela escreveu para o francês pedindo autorização para montar o texto aqui, já que ele era contrário à encenação em países que viviam sob ditaduras. "O programa da Rede Minas que vamos mostrar na live, por sua vez, fala de outras duas montagens da carreira dela, "Dona Beja", de 1980, e "Três Mães", de 2002", prossegue Jair.

Aliás, foi nos bastidores de Dona Beja que Magdalena e Wilma se conheceram. "Ali, eu tinha apenas dois anos de teatro. Quando fui escalada para trabalhar com pessoas do naipe da Wilma, Elvécio Guimarães, Paulo César Bicalho e Jota Dangelo... nossa, era muita honra. Estar junto com a Wilma, então, era sensacional. Naquela época, dava-se valor ao aprender, reverenciava-se quem veio antes. E acabei descobrindo que, além do talento, ela era uma pessoa muito divertida", diz a atriz. A equipe, lembra Magdalena, viajou toda junta para Estrela do Sul, para estudar mais sobre a personagem. "Era Carnaval, e a cidade parou com a chegada dos artistas. Por causa da Itacolomi, a Wilma já era muito conhecida".

Magdalena conta que o mais curioso é que Wilma acabou tomando conta dela, e "com um zelo de mãe". "Sempre a tive como mentora, alguém a se espelhar. Inclusive, quando fundei o sindicato, em 1992, tinha muito na memória o trajeto dela como ativista, na Moram". À medida que o tempo foi passando, a relação foi se estreitando. "Passei a tê-la como uma irmã mais velha. Quando ela me convoca, sempre atendo, com boa vontade, e também como presidente do sindicato que sou. Quando ela teve um acidente e quebrou fêmur, teve que deixar o apartamento localizado na rua São Geraldo, na Floresta, que não tinha elevador, e fomos nós, amigos, que ajudamos. O sindicato fez um convênio com o lar onde ela hoje reside para que ela pudesse pagar (a permanência) com a sua aposentadoria". Um ano depois, Wilma chegou a pedir para sair, indo morar na rua Augusto de Lima. Mas, devido à artrose, com a dificuldade decorrente em se locomover, acabou retornando ao local, onde está já há pouco mais de dois anos. "Ela chama a administradora de lá, a Shirley, de mãe".

Hoje, Magdalena é uma das que integram o círculo mais próximo a Wilma Henriques, fazendo as vezes de família - como Wilma não se casou nem teve filhos, o círculo que está mais amiúde com ela, fora do lar onde vive, é composto por ela, por Carluty Ferreira, por Jair Raso e pela amiga Cenira, a filha dela, Gabriela, e a neta, Júlia, hoje com 15 anos. Gabriela acabou se tornando uma espécie de filha para Wilma. "A Dinha me acolheu quando eu tinha um mês de vida, junto com minha mãe, que veio do interior. Minha mãe trabalhou com ela 45 anos, e eu fiquei lá também até meus 19 anos, quando casei. Foi lá que tive a base para a pessoa que sou hoje". 

Gabriela conta que, pelo fato de Wilma não ter filhos, acabou se apegando a ela. "A gente sempre teve uma relação muito boa, como mãe e filha. É a minha segunda mãe. Tenho um carinho enorme por ela, um agradecimento gigantesco por tudo que fez por mim, por ter me dado uma perspectiva de vida melhor, poder estudar, fazer faculdade. Como disse, aos 19, casei, mas depois de alguns anos, quando separei, voltei a morar com ela novamente, que se tornou madrinha da minha filha, a Júlia, a quem ela acolheu também de braços abertos, com um carinho enorme".

A família não biológica, mas de coração, de Wilma se completa com o ator e diretor Carluty Ferreira. "Conheci a Wilma como atriz em 1985, quando ela fazia 'Navalha na Carne' (de Plínio Marcos) na Sala João Ceschiatti. Fiquei tão encantado que fui pedir autógrafo", lembra ele.  Em 2005, com Carluty já atuante no Movimento de Teatro de Grupo de Minas Gerais, os dois se aproximaram mais. "E virei filho, amigo, diretor, colega de palco", enumera ele, que recebeu da diva o pedido de ressuscitar um grupo do qual ela havia participado, o Gambiarra. "De pronto fui atrás dos documentos, tudo". Depois, os dois montaram, pela Gambiarra, "A Dama Desnuda", de Renato Milani, baseado na vida da própria atriz, embora não cite o nome dela. "Com a montagem, a gente viajou todo o interior de Minas, de 2012 a 2014". 

Hoje, Carluty é responsável pelo acervo de WIlma referente ao teatro.  "Eu sinto que tive uma sorte tremenda de uma artista fenomenal como ela ter se aproximado de mim e deixar um legado sob a minha responsabilidade. Às vezes, me sinto um pouco como se estivesse em uma situação similar à de 'Conduzindo Miss Dayse'", diz, citando o filme estadunidense de 1989, na verdade uma adaptação de um texto teatral, protagonizado por Jessica Tandy e Morgan Freeman. "A amizade com ela é um presente dos deuses. Minha amiga encantadora, a quem chamo de princesa".

Carluty, aliás, criou o Teatro de Bolso Wilma Henriques, em Confins, inaugurado no início do ano passado. Logo na sequência, veio a pandemia, e o espaço, claro, teve que fechar suas portas. "Mesmo assim conseguimos fazer algumas coisas online", diz o artista. 

Em tempo: Mayron dá uma dica para aqueles que querem conhecer mais o trabalho de Wilma Henriques, no caso, na sétima arte. É que, no YouTube, está disponível o filme "O Menino e o Vento" (1967), de Carlos Hugo Christensen, no qual ela divide a cena com Ênio Gonçalves e Luiz Fernando Ianelli

 

 

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