BRASÍLIA. Último longa exibido na competitiva do 50º Festival de Brasília, “Arábia” começa com o cotidiano de André (Murilo Caliari), jovem do bairro Vila Operária de Ouro Preto que, por força das circunstâncias, acaba em contato com o caderno de memórias de Cristiano (Aristides de Sousa), trabalhador de uma fábrica local. E, por um breve momento, existe o receio de tratar-se de mais uma história em que a vida operária ganha importância pela empatia do jovem branco de classe média.
A potência do longa dos diretores mineiros Affonso Uchoa e João Dumans (de “A Vizinhança do Tigre”) está na genialidade com que ele subverte esse clichê e essa expectativa. Em “Arábia”, a empatia, a riqueza humana e o poder da narrativa estão todos dentro de Cristiano. E a generosidade e a poesia com que os dois cineastas constroem isso é o que faz da produção não só o melhor longa no Festival de Brasília, mas um dos filmes mais importantes já realizados em Minas.
“A gente queria inventar essa vida um pouco. Inventar uma mediação que não fosse vista como um olhar direto, mas como a grandeza dos romances. Um épico que desse a ver a grandeza de homens como o Cristiano”, explica Uchoa. Essa potência literária se manifesta no off quase onipresente, com a voz do protagonista narrando o texto do caderno, que acompanha dez anos de sua vida, de sua saída do bairro Nacional, de Contagem, passando por vários empregos em cidades como Governador Valadares e Montes Claros, até chegar à Vila Operária – num trajeto geográfico que representa o próprio encontro artístico do contagense Uchoa e do ouro-pretano Dumans.
É uma narração que pode incomodar, muitas vezes mais contando do que mostrando. Mas, num festival em que a principal discussão foi “quem conta a história” e “quem conta a história de quem”, ela responde a essas questões de forma primorosa, como se os cineastas dessem um passo para trás e quase abdicassem do lugar de narradores, reconhecendo o direito e a capacidade do operário de contar sua própria história. E a riqueza literária do texto deles – reescrito do zero quatro ou cinco vezes, inclusive depois do filme montado – justifica esse direito, encontrando dentro de Cristiano uma profunda humanidade, comparada no debate ao romance “São Bernardo”, de Graciliano Ramos.
Isso porque, nessa longa jornada bobdylanesca, Uchoa e Dumans vão tentar descobrir “quantas estradas um homem precisa caminhar antes de ser chamado de homem”. “Arábia” é essencialmente um road movie sobre o trabalho, sobre como definimos nossa identidade por ele, que oferece um motivo para acordar todo dia de manhã e determina nossa importância e nosso lugar no mundo. E, à medida em que o filme passa, a reflexão de Cristiano deixa de ser sobre tudo que o trabalho dá e passa a ser sobre tudo que ele tira – toda humanidade, emoção, sentimentos, potencialidades afetivas e criativas, que são sublimadas na criação de uma máquina que, quanto menos sente e pensa, mais produz.
“O filme é um romance de formação de uma consciência. E nosso desafio foi como construir essa consciência, não como algo dado, mas por meio da experiência vivida, da aprendizagem de lidar com o mundo. É a memória de uma vida sofrida que embasa essa formação”, descreve Uchoa. Nessa medida, “Arábia” é um longa sobre o poder e a importância de narrar, de contar e pensar a própria história – descobrindo-se não apenas como uma máquina produtora, mas como alguém que amou, errou, sofreu e teve toda uma vida para além do trabalho.
Trilha sonora. O elemento que deixa mais claro no filme o carinho e a generosidade desse gesto de descobrir a narrativa operária empreendido por Dumans e Uchoa é a música. De “I’ll Be Here in the Morning”, do Townes Van Zandt, que ressalta a importância mostrada no longa da camaradagem e da solidariedade operária para o solitário protagonista; a “Três Apitos”, com a voz de Bethânia opondo o romance de Cristiano e Ana (Renata Cabral) à crueldade da fábrica, filmada pela fotografia de Leonardo Feliciano como um personagem vivo e monstruoso, passando por Raul Seixas e “Raízes”, de Renato Teixeira. Elas são responsáveis por alguns dos momentos mais sublimes de “Arábia”, trazendo à tela a memória poética da história operária.
Juntas à tradição cinematográfica do road movie dos anos 70, com Aristides de Sousa sendo filmado como totem da consciência masculina vivido por Jack Nicholson nos filmes da época, a trilha musical e a fotografia dourada e romantizada de Feliciano conferem à jornada do protagonista esse verniz épico e o tom literário pretendido pelos cineastas. “Não existe tanta diferença entre Ulisses e o trabalhador. Depende da maneira como você olha. E mudar a história se relaciona com a mudança de escala que damos para os acontecimentos e personagens”, argumenta Dumans.
E essa mudança é operada por “Arábia” de forma sublime quando a jornada de Cristiano atinge seu catártico clímax. Nele, o texto, Aristides e os cineastas pegam seu coração como uma esponja, espremem e depois soltam, num convite que diz “abra-se e expanda-se, seja mais, liberte-se”. E você vai chorar. Porque ainda existe beleza em 2017, e nós precisamos dela.
O repórter viajou a convite do evento
FOTO: Rômulo Juracy / divulgação |
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Uchoa (com o microfone) e Dumans (centro, à direita) inspiraram-se em James Joyce |