Quando o cartunista, escritor, chargista e dramaturgo Miguel Paiva, 70, começou a publicar as primeiras tirinhas da personagem Radical Chic – uma de suas criações mais conhecidas –, ele atraiu diversos olhares, inclusive, de artistas veteranos com quem dialogava, a exemplo do mestre Millôr Fernandes (1923-2012). O desenhista, escritor, poeta, tradutor e jornalista, em vez de elogiá-lo, contudo, questionou as escolhas de Paiva. Nos anos 80, a Radical conquistava amplo sucesso e, depois, viria a se tornar ainda mais popular ao ganhar uma versão para as telas, com Andréa Beltrão interpretando a personagem em uma série homônima da Rede Globo.
“O Millôr era um gênio do cartum. Eu achava que ele era um humorista extraordinário, um desenhista fantástico. Mas ele tinha um jeito de abordar, assim, muito enfático, o que eu entendia. Certa vez, ele veio me falar da Radical e comentou: ‘Miguel, você está fazendo humor a favor das mulheres. O humor não pode ser a favor, tem que ser contra’. Acho que eu tive uma sacada inteligente na hora e disse pra ele: ‘Millôr, eu estou fazendo humor contra o machismo’. Ele ficou meio sem graça, mas eu me sentia muito seguro. Ele era o nosso papa, o cara para quem todo mundo baixava a cabeça, mas, de vez em quando, também cometia suas falhas”, conta Paiva.
Esta, dentre outras histórias, compõe parte da autobiografia “Memória do Traço” (Chiado Books), a ser lançada por ele nesta terça-feira (11) na sala Juvenal Dias do Palácio das Artes a convite do Sempre Um Papo. Nesse livro, Paiva revisita cerca de 50 anos de carreira iniciada no provocativo e emblemático “O Pasquim”. De ali em diante, ele logo se destacou pelas charges e desenhos que foram estampados em outras publicações de grande circulação, a exemplo das revistas “O Cruzeiro”, “IstoÉ”, além do “Jornal do Brasil” e “O Globo”.
Na rede. Durante seis anos, entre 1974 e 1980, ele viveu na Itália, produzindo quadrinho para outros projetos europeus, e, de lá para cá, diversificou seu campo de atuação, concebendo peças de teatro, roteiros para cinema e, atualmente, encontra na internet um dos principais meios de divulgação de suas charges.
“Eu acho que a internet trouxe uma vitalidade grande para esse seguimento. Muitos bons chargistas surgiram nos últimos anos, sendo conhecidos pelas redes sociais. Eu acho que eu passei por uma transição; houve um período em que eu não sabia muito bem como me comportar. Mas, hoje em dia, quando publico alguma na internet, eu sinto a mesma emoção que eu sentia ao ver uma charge impressa”, declara.
Um aspecto que permeia os trabalhos de Paiva, dos mais antigos até os mais recentes, é o olhar crítico para a política e a cultura contemporâneas. Radical Chic, por exemplo, emergiu no momento em que as mulheres experimentavam uma maior liberdade e autonomia em relação ao próprio corpo, mas, recorda o desenhista, elas ainda não ocupavam espaços de fala como os conquistados hoje.
“Naquela época, eu me sentia no direito, de certa forma, de falar por elas. Agora não é mais assim. Eu não me sinto nem autorizado nem capaz de falar por elas. Por isso eu não faço mais a Radical. Às vezes, republico alguma coisa, quando me pedem, mas não faço mais histórias novas. Então, nem sei como ela seria hoje”, revela.
Paiva integrou a equipe do “Jornal do Brasil” antes e depois da curta retomada da versão impressa do diário carioca, em 2018. Atualmente, ele é colunista do portal Brasil 247, no qual escreve e publica charges diariamente. Em razão do turbulento cenário nacional, Paiva pontua que são os fatos políticos que se impõem em seu processo criativo.
“Você abre a janela e recebe aquela baforada de realidade. É algo praticamente inevitável que isso aconteça, e acaba até virando uma coisa meio patética quem busca uma arte isenta, que não esteja, de alguma forma refletindo sobre o momento”, diz. “Eu realmente me dedico a isso, e vivemos num país em que o governo é o maior fornecedor de ideias para os chargistas”, conclui.
Livro reúne ilustrações e capas
“Memória do Traço” contempla memórias, histórias e faz um apanhado do trabalho de Miguel Paiva, o que contou com a curadoria e edição do seu filho, Vitor Paiva. “Eu cedi muito à vontade dele, porque sempre tive um senso crítico muito aguçado. Por mim, não entrava um monte de coisas, mas meu filho insistiu com alguns trabalhos que ele gostava. Por exemplo, entre 72 e 73, eu fiz umas capas para um suplemento infantil do ‘Jornal do Brasil’. Eu achei que isso era algo muito antigo, mas o Vitor defendeu e o que entrou obedeceu aos critérios dele”, diz Paiva.
Novidade
Em cerca de dois meses, ele deverá lançar um novo livro só com as charges publicadas no Brasil 247. “Será um volume sobre a era Bolsonaro, e estou feliz com a repercussão dessas charges. Há muito tempo não me sentia tão gratificado”, relata.