Entrevista

'O cinema sempre foi político', diz Silvio Tendler

Diante de novas produções que abordam fatos políticos do país, cineasta considera positiva diversidade de ideias

Por Bruno Mateus
Publicado em 16 de junho de 2019 | 03:00
 
 
 
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Nos últimos 50 anos, Silvio Tendler se dedicou a levar para o cinema alguns dos mais importantes acontecimentos sociais e políticos do Brasil e seus personagens principais. Juscelino Kubitschek, Castro Alves, Carlos Marighella, Milton Santos, Glauber Rocha e João Goulart ganharam o olhar de um dos maiores cineastas do país. “Jango”, documentário que completa 35 anos em 2019, ganhou prêmios nacionais e internacionais e arrebatou mais de meio milhão de espectadores.

Ao Magazine, Silvio Tendler fala sobre a relação íntima entre cinema e política e a atual produção audiovisual que aborda os recentes acontecimentos no Brasil.

Como você vê a atual produção audiovisual brasileira voltada a retratar as agitações e transformações políticas do país?

A relação do cinema com a política sempre foi muito forte no Brasil e no mundo. O cinema sempre foi político. Tivemos os anos do Cinema Novo, depois, durante a ditadura, você tem uma quantidade incrível de filmes, tem o “Pra Frente Brasil”. Em plena ditadura militar, fiz “Jango” e “Os Anos JK”. O (Eduardo) Coutinho fez “Cabra Marcado Para Morrer”. Puxando pelos dias de hoje, o cinema continua político, com pegadas diferentes. Fiz “Os Militares que Disseram Não”, “Sonhos Interrompidos”; Petra Costa está lançando um agora. O cinema brasileiro sempre teve essa pegada política. Hoje em dia, não é apenas a questão estritamente política, mas é também a defesa das periferias, das comunidades, dos direitos humanos, dos negros, das mulheres, dos LGBTs, a defesa da natureza. Estão sendo feitos muitos filmes. 

O momento é bom para a produção cinematográfica e documental no Brasil?

Durante os anos em que a Ancine funcionou bem, durante os governos Lula e Dilma, embora tenha começado com FHC e se aprofundado de lá para cá, você tem a presença de muitos documentários nas televisões, o que permitiu um mapeamento incrível da cultura brasileira e da diversidade. O documentário está sendo muito privilegiado. Agora, demos um break, a Ancine está tendo problemas, mas espero que se resolvam logo. Conseguimos formar um mercado amplo, muita gente vive da área de cinema. O audiovisual gera muitos empregos, circula muito dinheiro e não pode ser prejudicado por preconceito. Ultimamente, com essa safra nova de muitos filmes que temos aí, há uma construção nova da memória brasileira, um mapeamento como nunca houve. É fundamental, mas estou mais preocupado hoje com um processo de desmemória. É cada dia mais difícil construir essa memória. 

Em que momento o seu cinema se envolve com a política?

Em 1964, eu tinha 14 anos de idade. Começo a militar e fazer cinema político em 1968, no ano do AI-5, quando começo a virar cineasta. Aliás, durante o AI-5, eu estava fazendo o “JK”. Eu adoro cinema e ele não tem que necessariamente ser político. Cinema tem que ser bom. É aquela coisa: para ser político, tem que ser bom, mas, para ser bom, não precisa ser político. Tem muito filme político ruim também.

Existe cinema de esquerda e de direita? Há essa distinção?

Você tem cinema político que manifesta ideias de esquerda e de direita. Os filmes de direita legitimam os de esquerda e vice-versa. Acho importante o confronto. Sou contra você ter uma única ideologia. É muito fácil conversar entre iguais. É extremamente saudável que haja essa diversidade e esse contraditório. As pessoas até podem torcer o nariz para filmes de direita, mas as riquezas culturais de um país obrigam que você tenha todos os tipos de ideologia se manifestando no cinema. É através do confronto que se estabelece o diálogo. Deve ser muito chato morar em um país que tem uma única ideologia. É interessante ter filme defendendo a Lava Jato, falando do mecanismo. Aí você pode confrontar. Sou contra a monocórdia, uma única opinião. Continuarei fazendo meus filmes esquerdistas com o maior prazer e esperando que surja um cineasta de direita tão competente para que a gente possa dialogar.

O acesso do espectador ao audiovisual melhorou?

Mudou a natureza do espetáculo. Há 50 anos, os cinemas eram todos de rua, todo comércio era de rua. Todas as salas (de cinema) ficavam na rua. O espetáculo era uma continuidade da vida. Hoje, todos os cinemas se mudaram para os shoppings, e você praticamente só tem um tipo de espetáculo, que é o entretenimento. Ninguém vai ao cinema ver coisa política, nem de esquerda nem de direita. Temos que lutar para reconquistar algum espaço no cinema, mas aceitar a ideia de que existem outras veiculações, como a internet. Há muitos canais pequenos que passam filmes interessantes, e você tem as redes tipo Netflix e Now, que também passam muitos filmes políticos que despertam interesse do público, que procura, de forma mais ampla, o que não encontra na TV aberta e nos cinemas. Estou careca de entrar na Netflix para ver filmes políticos de todo o mundo.

Em 2019, “Jango”, seu premiado documentário que levou mais de meio milhão de espectadores aos cinemas, completa 35 anos. Por que ele alcançou tanto prestígio?

Eu queria falar sobre o Jango, sobre o presidente da República que mais tratou sobre a questão da responsabilidade social. Gostei muito de ter feito. Por que ele se tornou tão importante? Porque é um bom filme, é um puta filme, que fala da história brasileira. A figura do Jango é interessante, a trilha sonora de Milton Nascimento e Wagner Tiso é maravilhosa, tem o José Wilker como narrador. É um filme definitivo.

Se comparado a outros países, como a vizinha Argentina, que tem uma tradição de cinema enorme, em que pé está a produção cinematográfica brasileira?

O Brasil, infelizmente, está aquém do cinema dos hermanos. Eles estão dando um banho na gente. Eles não têm medo de encarar a questão política. O cinema deles é política e é cinema. O Brasil ainda está aquém do cinema argentino, mesmo que tenha filmes brasileiros de muita boa qualidade. Estou esperando com muita expectativa o filme do Wagner Moura sobre o Marighella. 

Assista "Jango", de Silvio Tendler:

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