Isolamento literário

O universo da literatura em tempos de quarentena

São muitas, as iniciativas: editoras se organizam para atender quem está em isolamento; enquanto projetos como Autor em Casa mostram o dia a dia de escritores

Por Patrícia Cassese
Publicado em 30 de março de 2020 | 19:30
 
 
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Em meio ao atual cenário de incerteza e medo, o filósofo suíço Alain de Botton elencou ao menos um lado positivo decorrente do isolamento social.  "Não pode ser coincidência que muitos dos maiores pensadores do mundo tenham passado uma quantidade incomum de tempo sozinhos em seus quartos. O silêncio nos dá a oportunidade de apreciar grande parte do que geralmente vemos sem nunca perceber adequadamente, e entender o que sentimos", disse ele, em entrevista ao jornal "O Globo", publicada na edição do último dia 29.
 
Em tempos de quarentena, não foram poucos os lançamentos de livros e eventos literários previstos para este primeiro semestre que foram cancelados. Em contrapartida, que ninguém acuse os diversos atores da cena literária de estarem inertes, em compasso de espera. Ao contrário. Escritores e editoras tratam de colocar a mão na massa para que a cultura não saia de cena - afinal, que melhor aliada a humanidade poderia ter em tempos sombrios?
 
Uma das boas ideias que pipocaram nas redes foi o projeto "Autor em Casa": o nome, aliás, já dá o indicativo da empreitada, conduzida pelo jornalista, escritor e gestor cultural Afonso Borges. "Na verdade, a ideia surgiu de um grupo de whatsapp do qual participo, o  Literatura e Liberdade. Conversando sobre o confinamento, as dificuldades, circunstâncias com as quais cada um está lidando, um dos participantes,  o Zeca Camargo, postou uma foto do local no qual trabalha. A partir daí, quase todos começaram a postar. Então, o que fiz? Convidei todos os demais a postarem, batizei o projeto e utilizei a plataforma do  MondoLivro para colocar. Assim, aos poucos, todos estão postando seus ambientes de trabalho, junto a um pequeno texto. E aí as pessoas podem ver como cada escritor está se virando nesses tempos de confinamento que a gente está chamando de 'outonada'", descreve Borges.
 
Nome por trás do projeto "Sempre um Papo", ele fala sobre um outro projeto oriundo do mesmo grupo de whatsapp, o "Leitura do Autor", "Surgiu por força da solicitação das livrarias em prover de conteúdo as suas redes. Assim, os autores estão lendo pequenos trechos de seus livros. Gente como Mirian Leitão, Sergio Abranches, Lilian Schwartz. O 'Leitura de Autor' está hospedado no YouTube do Sempre um Papo. E esse, por sua vez, se se transformou no 'Outono em Casa', que vem a ser o período que a gente calcula que ficará  'invernado'. Assim, é possível assistir aos mais de 400 registros dos encontros com escritores que faço há mais de 20 anos", elucida.
 
Muitas casas editoriais também arregaçaram as mangas para dar a quem fica em casa a oportunidade de se abastecer de saber. Caso da Companhia das Letras, que vem disponibilizando o "Diários do Isolamento", com textos assinados pelos escritores de seu elenco. Gente como Luisa Geisler, Fábio Moon, Jarid Arraes ou Eliana Souza Silva. De acordo com a editora, a iniciativa é parte do projeto "Leia Em Casa", que visa oferecer uma série de conteúdos especiais para quem vai permanecer em casa nos próximos dias. Em entrevista a O TEMPO, o editor da iniciativa, Mauro Gaspar, explicou:  "A ideia veio a partir de uma reunião em que a gente estava pensando ações interessantes para gerar conteúdo para os leitores. Daí, pensei que seria interessante um diário em que, a cada dia da semana a gente tivesse uma pessoa diferente escrevendo. Homens, mulheres, pessoas de geração diferentes e de lugares diferentes - talvez essa seja uma das coisas mais importantes,  para saber como está a experiência de cada um. E produzindo textos com os quais acho que todos nos podemos nos relacionar, afinal, todos nós estamos passando por uma vivência parecida, a da quarentena, do isolamento".
 
Gaspar acrescenta: "A ideia veio um pouco junto com o que para mim é o objetivo principal (da iniciativa), que é você ter um registro dessa experiência e, ao mesmo tempo, com textos de vozes diferentes que possam confortar, fazer companhia, ajudar a refletir, junto aos leitores, junto a mim, que edito, e também junto a outras editores. A ideia é que funcione como uma experiência coletiva. E tem sido muito boa a recepção, o retorno. Acho que as pessoas estão interessadas. A princípio, é uma primeira rodada de quatro semanas com esses autores e, daí, vamos ver em que pé estão as coisas, o que a gente sente".  Nesse primeiro mês, portanto, serão 28 textos, ou seja, 28 entradas no diário, quatro de cada autor. "E penso que eles mesmos estão se lendo e aprofundando a ideia", diz Mauro. 
 
Outras editoras também têm procurando estratégias para se conectarem aos leitores neste período. A editora Boitempo, por seu turno, está disponibilizando, até o dia 1º de maio, diversas obras para download gratuito. "Para quem pode ficar em casa, convidamos à reflexão para buscarmos entender como chegamos até aqui e para que possamos nos preparar para os desafios políticos e sociais que nos aguardam após o período de confinamento", diz o comunicado da casa.
 
Na Melhoramentos, a campanha Ler em Casa traz como chamariz a oferta de uma série de títulos de e-books e áudio livros com 30% de desconto, bem como outras opções por R$ 1,99 (oferta que vai até esta terça-feira, 31) e até R$ 10 (até o dia 2 de abril). Mas dois e-books gratuitos da coleção "Clássicos" também serão distribuídos diariamente. São obras de autores como Ziraldo e Mauricio de Sousa.  Os autores da casa também estão envolvidos na feitura de uma série de vídeos exclusivos que serão postados nas mídias sociais da editora. E para professores, a editora preparou uma seleção específica. "A educação é a melhor forma de fortalecimento", diz a editora. A Valentina, por sua vez, disponibilizou três títulos: "Sem Olhar Para Trás", "Para Perfeirto" e "Contrapartida". O interessado deve acessar https://skeelo.app/cupom, inserir o cupom COVID19, baixar o app e completer o cadastro, para ter acesso aos mesmos, além de dois guias sobre a Covid-19 e sobre fake news referentes ao tema.  
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Concurso para os dias de quarentena. A mineira Páginas Editora foi além. A publisher Leida Reis percebeu, em suas incursões em redes sociais, o potencial literário que havia nos relatos de vários internautas sobre os dias de confinamento. Veio, então, a ideia de um concurso. "São muitas histórias que estão acontecendo nesta quarentena, muitas envolvendo coisas do cotidiano mesmo. Experiências bem diferentes e pessoais que as pessoas começaram a compartilhar nas redes sociais. Então, tivemos a ideia de fazer uma antologia com esses textos, mas, antes disso, um concurso mesmo, com premiação em livros para os três melhores textos", especifica a também jornalista e escritora. 
 
As inscrições para o citado concurso vão até o dia 10 de maio. No dia 20 daquele mês, os três  vencedores serão anunciados. A editora entrará em contato com os autores dos demais textos e, de acordo com interesse deles, mediante uma taxa simbólica, poderão entrar na antologia. "Vamos lançar o e-book, mas a ideia é ter um lançamento do impresso com festa. Porque, dada a situação,  tem que ser presencial, com muitos abraços", diz Leida, que acredita que o evento possa ser realizado em setembro. "É a nossa previsão. Já recebemos alguns textos, e há muitos compartilhamento do concurso nas redes, muita gente marcando outras pessoas. Então, acredito que a gente vá receber um bom número de  crônica, que é um formato fácil, gostoso e que é o retrato desse cotidiano louco e estranho que estamos vivendo, mas que pode render bons textos", conclui.
 
Desafio à inspiração. Isoladamente, alguns escritores têm seguido instintivamente o preconizado por Alain de Botton. A jornalista e poeta mineira Sidneia Simões, por exemplo, acabou postando, em suas redes, dois poemas que brotaram nesses tempos de quarentena. "Moro sozinha, e, desde o dia 17, praticamente não saio de casa. Saí uma vez para fazer compra. Estou aqui entre afazeres da casa, livros, filmes, estudos e... também telefone e redes sociais. 'Parte Que Parte', escrevi como um desabafo", diz ela, referindo-se a um dos poemas (confira o mesmo ao final dessa matéria). 
 
Sobre as mudanças que a quarentena traz, ela cita a necessidade de exercitar o silêncio, de saber ficar em casa, de buscar o auto-aprimoramento e de ser mais solidário. Autor de "Olhos de Carvão", Afonso Borges diz que, antes do advento do novo coronavírus, já exercia o home office há dois, três anos. "Então, em tese, não mudou nada, só o fato de eu não sair mais. Mas trabalhar de casa é o que faço e gosto, mesmo porque,  tenho disciiplina para isso. Mas tem que ter, senão, não funciona", pondera.
 
Audiobooks gratuitos. Por conta do confinamento, a plataforma de audiobooks Auti Books, em parceria com autores e editoras, passou a oferecer semanalmente dois audiobooks gratuitamente. As novidades serão anunciadas em seu Instagram. Títulos como “Me Poupe!”, de Nathália Arcuri, e “Como as Democracias Morrem”, de Levitsky e Ziblatt, são alguns dos que já foram disponibilizados gratuitamente aos ouvintes. 
 
Para ter acesso, é preciso acessar a plataforma www.autibooks.com, selecionar o título e enviar para o carrinho. Antes de fechar a compra, adicionar o cupom VAMOSAJUDAR e o valor será alterado para grátis. Ao finalizar o processo, o audiobook estará disponível na estante do usuário para ser ouvido. Em material enviado à imprensa, o CEO Claudio Gandelman lembra que, recentemente, dez clássicos infantis foram disponibilizados para  download gratuito. "Percebemos a crescente demanda por conteúdo nesses dias de distanciamento social. Por isso, conversamos com autores e editoras para que mais pessoas e empresas entrassem nessa empreitada", escreveu ele.
 
 

Confira, abaixo, o poema "Parte que Parte", de Sidneia Simões, inspirado nestes dias de quarentena

"Parte de mim precisa morrer: a parte que se acha o todo 

sem ver palmo além do nariz

a parte que não tem espelho

aponta o dedo

e dispara o medo

nega a sombra e assombra

taxa: é roxo, é vermelho

sobretaxa o vício do outro

e choca o próprio rabo

esconde o sujo e o tapete

e faz de conta

parte de mim precisa morrer

a parte que não se reparte

a que se acha e não se lasca

a que finge e só infringe

a que se faz de esfinge

a que turva

a que não se curva

a que não sabe silêncios

a que não cabe em casa

 

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