"Judas e o Messias Negro", filme de Shaka King que entra em cartaz nesta quinta-feira nos cinemas de todo o país, se volta para um episódio real da história norte-americana recente que envolve luta por direitos, espionagem patrocinada pelo FBI e, como o título já sugere, traição. Estamos no final dos anos 60, e, após a morte de Malcon X (em 1965) e de Martin Luther King (1968), paira a preocupação do surgimento de um novo líder do ativismo contra a segregação racial, o Messias citado no título.
Mas a verdade é que ele já emergiu, e responde pelo nome de Fred Hampton, ativista dos Panteras Negras em Illinois. Carismático, Hampton, então com apenas 21 anos, está, naquele momento, atraindo cada vez mais os holofotes em torno de sua figura e de sua oratória, sendo capaz inclusive de estabelecer diálogo com outros grupos que lutam pelos direitos dos negros (como os Crowns) ou pelos dos excluídos pelo sistema capitalista de uma forma mais ampla.
A ascensão de Hampton já está no radar do FBI - em particular, no de J. Edgar Hoover (Martin Sheen) - e, para monitorar seus passos, nada melhor que infiltrar um espião no Panteras. Evidentemente, ele precisa ser negro. A escolha recai sobre William O'Neal, um ladrão de carros que executa suas ações a partir de um expediente bem particular: Bill, como é chamado, aborda os donos dos veículos que estão na sua mira com um distintivo falso do FBI, e sob a alegação de que o mesmo é roubado. No desenrolar da inevitável discussão que se sucede, ele leva o carro.
Desta vez, porém, pego pela serviço de inteligência, o personagem se vê frente a frente com Roy Mitchell (o excelente Jesse Plemons, de "Estou Pensando em Acabar com Tudo"), que lhe pergunta sobre sua reação diante das mortes recentes de X e Luther King. Bill responde que, na verdade, ainda não tinha parado para pensar muito nisso, explicitando seu descomprometimento com a causa.
Ambicioso e a fim de se livrar da pena, que lhe tomaria mais de cinco anos, rapidamente ele vê, na proposta de Roy, a possibilidade não só de ficar livre, mas de faturar algum se infiltrando no movimento que, segundo o agente, seria equivalente à Ku Klux Klan no quesito radicalismo.
Personagens descritos, falta falar dos atores que os encarnam. Hampton é vivido por Daniel Kaluuya, de "Corra!", o premiado filme de Jordan Peele. E William, por Lakeith Stanfield, também de... "Corra!". Sim, os dois inclusive contracenam, no longa de 2017.
Mas voltemos a "Judas e o Messias Negro". Feito o trato, Bill adere às alas do Panteras sem grandes dificuldades, e logo não só se torna um dos braços direitos de Hampton, como chega ao posto de chefe da segurança dele. Não que tudo corra às mil maravilhas. Bill participa de ações arriscadas e treme feito vara verde ao se inteirar do destino de um infiltrado que, tendo sua identidade e função descobertas, foi parar no fundo do rio. Ao mesmo tempo, avança nos pedidos de mais bônus em troca do repasse de informações, e se deixa levar pelo canto da sereia travestido de idas a restaurantes caros e mesmo à casa de seu titereiro.
Enquanto isso, a ascensão de Hampton não chega a ser propriamente interrompida com a armada prisão do líder, motivada por uma acusação fútil. Paralelamente, o público assiste ao envolvimento do ativista com a companheira Deborah Johnson (Dominique Fishback, conhecida por sua participação na minissérie "The Deuce"). Hampton sai da prisão modificado, e seus discursos adquirem um tom ainda mais veemente. É neste momento, pois, que o FBI não vê outra saída senão colocar um ponto final nesta reta ascendente. E é aí que a Bill é delegada a mais complexa e ingrata de suas tarefas.
Por ser baseada em fatos reais, muitos já sabem o desenlace desta história. Os que não conhecem podem recorrer ao Google para se inteirar dos detalhes, ou, ainda, se deixarem conduzir pela narrativa, que, vale dizer, é didática sem nunca subestimar a inteligência do espectador. Nesta nova e envolvente oportunidade de se enfronhar na trajetória de um grupo tão icônico na luta política mundial, vários trunfos podem ser citados, tal como figurino, reconstituição de época e trilha sonora, com destaque para "Rain", de Eddie Gale.
Mas o grande mérito recai sobre as atuações. Raro ver um elenco tão homogêneo no quesito talento. Os dois protagonistas estão absolutamente impecáveis, dignos de todas as premiações que porventura venham a arrebanhar. Mas é necessário pontuar também o poderio de Plemons, que impacta às vezes apenas com o seu olhar, como na cena em que vai conferir in loco a reação de seu subordinado no territorio do "inimigo", temendo que ele esteja "contaminado" pelos ideais dos Panteras.
Em tempo: difícil conter a vontade de, em meio à sessão, anotar uma pá de frases ditas por Deborah e Fred Hampton.
Confira, a seguir, o trailler
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