Rogério Skylab, 63, já cansou de se declarar “um cadáver dentro da música brasileira”, frase que ele justifica com o fato de sua extensa obra jamais ter despertado o interesse de intérpretes relevantes. Sem aderir completamente a nenhum movimento ou gênero, mantendo uma postura crítica diante desse cenário, o músico admite pontos de identificação com uma vasta e diversificada gama de artistas, dentre eles Tom Zé e Décio Pignatari (1927-2012), responsáveis pela concepção da emblemática capa do álbum “Todos os Olhos” (1973), que sugeria a presença de uma bola de gude em um ânus.
Skylab acaba de finalizar a sua Trilogia do Cu, que reafirma a fixação do compositor por trabalhos seriados. A faixa-título “Crítica da Faculdade do Cu”, que abre o álbum, retrata esse caráter obsessivo, com um ruído constante que se acopla a sons intermitentes. Solitária, a sentença que se repete parece planar em um ambiente áspero e tátil. O etéreo não interessa em nada a Skylab, concentrado na realidade.
A perspectiva do músico diante desse real é o que fomenta a originalidade da sua obra. Skylab detém-se sobre aspectos e condições do ser humano que a espécie procura refratar, ou seja: tudo que existe, de forma tão latente quanto incômoda, mas que preferimos ignorar devido à sua repulsa, crueldade ou abjeção. Essa fisicalidade da vida humana e suas consequências psicológicas e existenciais são abordadas por Skylab sem complacência.
Repertório
Com “A Marchinha Psicótica de Dr. Soup”, o músico se presta ao papel dos intérpretes que renegaram sua obra, e, mais do que homenagear Júpiter Maçã (1968-2015), coloca o dedo na ferida do estapafúrdio cenário político que tomou conta do país. Por fim, ele dá vazão a um grito incontido na garganta.
Na sequência, os murmúrios do cantor adensam o lirismo melódico da canção “Fundo do Mar”, que, desta feita, promove o encontro com o incompreensível e amplo sob a perspectiva do macabro.
“Homo Sacer”, parceria com Lívio Tragtenberg, pulsa, minimalista, na temperatura de uma fria luz artificial. É o prelúdio para a pancadaria da não menos experimental “Tem Cigarro Aí”, em que o mesmo questionamento se reveza na boca de diferentes vozes, de modo antidiscursivo e desmoralizante.
Ao mimetizar vícios da fala, Skylab joga no colo do ouvinte uma observação mordaz sobre a visão de mundo reacionária e conservadora, baseada na publicidade. Por outro lado, “A Máquina Fantástica” chega às raias do insuportável, ao abafar, com sua massa eletrônica, a singela reflexão que tece acerca da predominância da tecnologia sobre o corpo humano.
“Caetano de Dedé” volta a se aproximar do formato de canção, mas sem concessão total. Embora retome questões importantes para o anfitrião, soa menos inspirada que o conjunto do novo trabalho. Nada que “Quando nos Encontramos” não resolva. A faixa invoca um diálogo labiríntico que remete a Jorge Luis Borges (1899-1986).
A relação com o duplo, aqui, traz como pano de fundo as teias de redes virtuais que têm se estabelecido. “Cabecinha”, com participação do MC Gorila, politiza novamente o discurso. O funk carioca é a ligação direta com a política de segurança do atual governador do Rio, Wilson Witzel, de executar na cabeça os traficantes e, “eventualmente”, atingir crianças que moram nas favelas. A violência se transmuta em ato sexual e Skylab não resiste a derrapar na escatologia.
“Beijar É Mais Importante que Fuder” deixa jorrar a expressão mântrica. “Sem Fim” apresenta uma visão sombria e exasperante sobre a morte e o desaparecimento. “Buceta Bradesco” começa como uma troça à infame inteligência artificial da agência bancária, batizada de Bia, mas, em seu decorrer, a canção com ares de samba sinfônico se revela como uma das mais incisivas e contundentes do repertório de Skylab, ao poetizar com vigor a imagem que almeja a concretude: “É um buraco negro/ Tem gosma, tem sangue/ Tem cheiro, tem pelo/ O seu coração é uma cloaca/ Um buraco no meio e o vazio dentro”. “Minha Escola de Samba” atende à ânsia da experimentação musical, quase como um exercício.
“O Aleijado” inclui e humaniza o protagonista sem nenhuma piedade. É um dos pontos altos do álbum, onde a fisiologia inerente ao eu lírico desliza entre o insólito e o excessivamente humano. A densa “Hieróglifos” acentua a beleza de sua letra graças à magnitude do arranjo, mantendo o nível elevado. “Yemanjá” peca pela, talvez proposital, monotonia.
“Segredos” fecha o disco em tom de balada, sem produzir o mesmo impacto de faixas anteriores. Ao fim e ao cabo “Crítica da Faculdade do Cu” se consolida como o trabalho mais agudo e expressivo de Skylab e, de todos, o mais completo.