Enquanto o Primeiro Comando da Capital (PCC) amplia sua atuação para muito além do tráfico de drogas, chegando a se infiltrar em empresas públicas e privadas, cresce o interesse pelas ações da facção criminosa paulista entre investidores estrangeiros. Antes de colocar dinheiro em empresas brasileiras, eles querem saber como a atuação do crime organizado - que envolve de fintechs à gestão de redes de combustíveis - interfere na economia do país e nos setores produtivos. No mercado financeiro, já se fala em “risco PCC” ao lidar com investimentos.
A preocupação se deve ao impacto que as organizações criminosas oferecem aos cofres públicos e à saúde financeira das empresas que seguem as regras fiscais. Um estudo encabeçado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) calcula que, somente em 2022, o crime organizado gerou um prejuízo de R$ 453,5 bilhões com sonegação de impostos, fraude fiscal, contrabando, pirataria, roubo e furto de serviços públicos.
"Estamos diante de uma situação muito delicada, não apenas pela concorrência desleal que o crime cria para empresas formais, mas pela insegurança que gera, tanto regulatória quanto para o ambiente de negócios", disse à Folhapress o procurador-geral da República, Paulo Gonet. Somente neste ano, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) e a Polícia Federal (PF) deflagraram operações contra duas fintechs suspeitas de servir para lavagem de dinheiro do PCC. Em um dos casos, a movimentação verificada foi de R$ 6 bilhões.
"Se, antes, os criminosos precisavam ‘enterrar dinheiro’, agora alguns já lavam recursos por meio de uma fintech aberta por parceiros. Se antes saqueavam transportadoras para vender segurança ou ter influência sobre a empresa, agora tentam manter as suas próprias frotas", analisa o promotor de Justiça Fábio Bechara, integrante do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Para alguns analistas do mercado e investidores, este é um exemplo de um novo modus operandi da organização: em vez de somente adulterar dados ou extorquir empresários, ela cria suas próprias empresas e opera em aparente legalidade. “O PCC deixou de lavar dinheiro em empresas de fachada e, hoje, investe dentro do Estado. Ele presta serviço e lava dinheiro. A biqueira, que era a forma mais comum de o narcotráfico fazer dinheiro, tem lucros muitos altos e também se expandiu”, introduz a desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Ivana David.
Neste novo ambiente, o desafio de separar o lícito do ilícito aumenta, e investidores se deparam com um novo perigo no Brasil — o de trabalhar, sem saber, com organizações sustentadas pelo tráfico de drogas. Este é um risco elevado especialmente em um momento em que os EUA, por exemplo, cogitam equiparar o PCC e outros grupos, como o Comando Vermelho (CV), a grupos terroristas. O ensejo, inclusive, já foi comunicado ao governo brasileiro, informa o coordenador da Escola de Segurança Multidimensional (Esem) da Universidade de São Paulo (USP), Leandro Piquet.
Na avaliação dele, um avanço nesta tese poderia representar prejuízos ainda difíceis de serem calculados para agentes do setor financeiro com qualquer envolvimento com essas organizações. “Se ocorrer essa mudança de classificação dos EUA sobre as organizações criminosas brasileiras, classificando-as como terroristas, a legislação norte-americana pode complicar muito a vida dos grandes bancos brasileiros. É algo com que todo mundo se preocupa, além de todos os custos de operação para os investidores aqui no Brasil. Em setores em particular, que são super afetados pela ação do crime organizado, como tabaco e nicotina, combustível, energia elétrica e mercado imobiliário em várias cidades do Brasil, isso reflete, por óbvio, em um clima negativo para os negócios", elabora o professor.
No mercado, agentes financeiros dizem que a operação do PCC ameaça não apenas os ganhos de grandes empresas que atuam na legalidade, mas também a segurança do ambiente de negócios. Tanto que profissionais do mercado financeiro ouvidos recentemente pela Folha de S. Paulo, em anonimato, teriam dito que possuem a obrigação profissional de medir o “risco PCC” para investidores.
"O crime organizado, de todas as vertentes e tamanhos, está entrando com tudo numa série de setores, criando concorrência desleal para quem trabalha na legalidade", disse à Folhapress o empresário Rubens Ometto, controlador do grupo Cosan, que atua em áreas como ferrovias, usinas de açúcar e álcool, distribuição de combustíveis.
Fragilidades abrem caminho
No projeto de penetração na economia formal do país, o PCC e outras facções se aproveitam, inclusive, das fragilidades do Estado. A regulamentação das fintechs no Brasil só foi feita em 2018, com a publicação de duas resoluções que ainda estão sendo aprimoradas. Um relatório do Instituto Esfera de Estudos e Inovação em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstra que apenas um quinto das fintechs atua sob supervisão do Banco Central (BC) — 334 em um universo de 1.592 são regulamentadas.
Outro ponto de vulnerabilidade do sistema financeiro do Brasil é a falta de estrutura do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão do Ministério da Fazenda que monitora transações potencialmente ilícitas . Entre 2015 e 2024, as comunicações de operações financeiras suspeitas ao Coaf dispararam 766,6%. O órgão, contudo, não recebeu um incremento de funcionários e seguiu com 93 servidores para identificar as possíveis fraudes — só em 2024, cada um teria, em média, 27,5 mil casos para análise.
"Identificamos que o Coaf é o centro nervoso de combate ao crime organizado. Se não identificar e rastrear o dinheiro e o capital do crime organizado, não vamos conseguir enfrentar essas organizações. Não há plano e projeto de segurança pública sem o aperfeiçoamento do Coaf", pontua o advogado criminalista e presidente do conselho do Instituto Esfera, Pierpaolo Bottini, um dos responsáveis pelo levantamento.
Além de brechas regulatórias, grupos criminosos também encontram brechas na estrutura do Estado. Em São Paulo, o PCC se infiltrou no setor de transporte público para transportar centenas de milhares de passageiros até que o esquema foi descoberto em 2024. É uma situação que pode se repetir em outros mercados, avalia a desembargadora Ivana David.
“Quando se trabalha com o Estado, por via de regra tem que se passar por alguns processos. Em uma licitação, uma empresa do crime pode oferecer um preço mais baixo, porque tudo o que oferece é proveniente do crime, e não de uma empresa de família que trabalha e paga impostos, obrigações trabalhistas e tem que colocar isso no custo. A facção já compra uma empresa novinha, arrumadinha, sem litígio, e oferece o preço da licitação lá embaixo. Ela recebe de retorno um dinheiro limpo”.
O procurador do Ministério Público de São Paulo (MPSP) Márcio Sérgio Christino pondera, porém, que não há uma base de dados confiável sobre a extensão do poder do PCC e argumenta que o temor de que a organização se infiltre massivamente no mercado financeiro do Brasil é um exagero. Na perspectiva dele, ainda que a facção atue em outros campos, seu cerne ainda é o tráfico de drogas e é esta frente que deveria atrair os maiores esforços de combate.
“O PCC não é um risco iminente na área financeira. O que ele tem é uma renda muito grande do tráfico. O problema do PCC não é ganhar dinheiro, mas transformá-lo. Uma licitação não fará com que transforme dinheiro ilícito em lícito. Não adianta combater a lavagem de dinheiro e manter a fonte de arrecadação. A questão é uma só: o Brasil precisa decidir o que fará em relação ao tráfico, porque nossa lei não tem sentido, é contraditória em si mesma”, conclui.
‘Brasil demorou a acreditar no PCC’
Ao entranhar-se em serviços do Estado, o PCC aproxima-se das características de uma máfia, acredita a desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Ivana David. Uma das possíveis linhas de combate defendidas por alguns membros do Judiciário é justamente uma lei antimáfia, aos moldes do que já foi aplicado na Itália — ela poderia permitir que bancos bloqueassem preventivamente recursos suspeitos, como no caso de terrorismo, por exemplo.
A desembargadora lembra, contudo, que a realidade brasileira é muito diferente da europeia — e, talvez, única no mundo. “O Brasil não é a Itália. Ele tem características geopolíticas diferentes de qualquer lugar do mundo. Ele faz fronteira com dez países na América do Sul, e três deles são os maiores produtores de droga no mundo. Bolívia, Colômbia e Peru. O problema é que o Brasil demorou muito a acreditar no PCC, e a facção foi crescendo”, diz.
Ainda mais urgente do que novas leis contra a facção, enfatiza ela, é reforçar o trabalho de base das polícias, especialmente nas fronteiras. “Elas precisam de tecnologia e capacitação. O Brasil é um país gigantesco, continental, com todas as portas de entrada e saída abertas. Quem não tem controle sobre suas fronteiras está aberto a qualquer tipo de ‘invasão’”.
Na última semana, o Ministério Público de São Paulo e a Procuradoria Nacional Antimáfia e Antiterrorismo da Itália (DNA) assinaram um Acordo de Cooperação Técnica para um intercâmbio de informações e capacitação de funcionários no combate a organizações criminosas. A iniciativa é importante para ampliar o conhecimento das autoridades brasileiras, mas ainda mais relevante é voltar o olhar para a América do Sul, sublinha o professor da USP Leandro Piquet, ao citar a falta de cultura de cooperação no bloco.
"Precisamos começar a olhar também para a América do Sul. Porque dependemos muito do que acontece nos países vizinhos e temos uma ignorância estrutural com relação a esses países, principalmente na área de segurança e defesa. O nosso problema número um com a cocaína depende da Bolívia, Peru, Colômbia e Paraguai. Desde o simples reconhecimento genético das apreensões para entender a origem das plantas que produziram essa cocaína, se está vindo do Peru, da Bolívia, da Colômbia. É incrível como somos distantes. Institucionalmente, somos fracos nessa relação. E o Brasil tem essa coisa de querer ficar falando sobre guerra da Ucrânia, mas não tem força aqui na América do Sul. Deveria jogar muito mais energia aqui do que lá", finaliza.
Questionado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública reforça que o país mira uma atuação integrada de combate ao crime organizado. A pasta esclarece que há uma estruturação, por meio de capacitações e treinamentos, nas 27 unidades da federação.
Por meio de ações constantes contra as Organizações Criminosas, somente em 2024, enfraqueceu as organizações gerando prejuízo total ao crime de mais de R$ 5,5 bilhões. Em 2025, até o momento, foram R$ 4,1 bilhões foram retirados do crime organizado”, ilustra o ministério.
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informa que defende a antecipação do prazo para que fintechs se regularizem e peçam autorização junto ao Banco Central. "Embora a concorrência seja bem-vinda e saudável, tem de ocorrer em condições de igualdade, particularmente na observância das regras prudenciais e de prevenção à lavagem de dinheiro", destacou em nota enviada à reportagem. Procurados, Coaf, Banco Central não se manifestaram.
*Com informações de Alexa Salomão, da Folhapress