O governo brasileiro já reúne uma lista de argumentos para recorrer à OMC (Organização Mundial do Comércio) contra o tarifaço de Donald Trump e pode acionar a instituição de forma paralela às tentativas de negociação com os Estados Unidos.
A avaliação é que, mesmo que a última instância da OMC esteja em estado de paralisia por causa dos americanos, os EUA continuam sendo membros da instituição e têm interesses em discussão no órgão. Por isso, a possibilidade de recorrer ao órgão não é descartada.
Entre membros do governo, são citados casos de discussões recentes dos EUA na OMC. Em janeiro, por exemplo, os americanos chegaram a um acordo com o Vietnã após reclamações do país asiático sobre medidas adotadas pelos americanos no setor pesqueiro. Em maio, EUA e China tiveram negociações na organização após Pequim reagir a iniciativas comerciais da gestão Trump.
Entre os argumentos considerados pelo Brasil, está a violação dos EUA a regras que formam a espinha-dorsal da instituição. Uma delas é a da transparência, que exige dos membros a publicação de regulamentações claras e previsíveis sobre políticas comerciais. Segundo integrantes do governo brasileiro, as tarifas de Trump são unilaterais e não estão sendo notificadas à entidade.
Outro princípio violado pelos EUA, na visão brasileira, é o da "nação mais favorecida" -que exige de um país o tratamento igual aos demais membros, sem discriminação. Isso garante que as vantagens comerciais a um parceiro sejam estendidas a todos os outros. Por isso, podem ser contestados até mesmo os acordos anunciados por Trump com outras economias.
Além disso, as tarifas de Trump não estariam respeitando o chamado Schedule of Concessions -as tarifas máximas a serem praticadas pelos membros da organização. Os percentuais americanos estão, em geral, muito além dos números com que eles haviam se comprometido. Também pode ser usada a regra na OMC que prevê uma compensação ao país que for prejudicado pela tarifa de outro.
O passo inicial do Brasil para um processo na OMC seria o pedido de consulta, que teria que ser aceito pelos EUA. Quem reclama solicita a outro informações sobre as práticas comerciais e requer modificações das medidas.
Nessa primeira fase, a parte demandada tem o prazo de 10 dias para responder. Se as consultas não solucionarem a disputa em 60 dias após o recebimento do pedido, a parte demandante pode pedir a instauração de uma segunda etapa: o estabelecimento de um painel.
Os painéis são formados por três membros, escolhidos de comum acordo pelas partes. Os dois países apresentam petições escritas e participam de audiências. O painel emite um relatório sobre as medidas em contestação e sua compatibilidade com acordos da OMC.
O prazo teórico para a apresentação desse relatório é de até 6 meses, prorrogáveis por mais 3. Na prática, no entanto, a fase de painel tem durado cerca de 12 meses -a não ser em casos de maior complexidade, que podem se arrastar por até 5 anos.
O país derrotado no relatório do painel pode entrar com recurso, dando início a uma terceira e última etapa: uma contestação no Órgão de Apelação. O colegiado pode manter, modificar ou reverter as conclusões de um painel e a decisão é de implementação obrigatória pelos países-membros, devido a compromissos assumidos com a OMC por meio de suas respectivas legislações.
O problema é que essa última instância está paralisada desde 2019 graças aos EUA. Trump anunciou em agosto de 2017 (durante seu primeiro mandato) que não fecharia acordo para preencher as vagas do colegiado.
Com isso, até hoje mais de 20 decisões de painéis na OMC foram apeladas "no vácuo". Isso significa que a instituição não pode tomar decisões finais caso um país conteste resultados de instâncias anteriores.
Ngozi Okonjo-Iweala, diretora-geral da OMC, ressaltou no ano passado que, apesar de a última instância estar inoperante, o sistema de resolução de contestações continua ativo. "O Órgão de Apelação está paralisado. Mas o sistema em si [de resolução de conflitos], não", disse.
Uma solução final pode demandar anos, como no caso do algodão. O Brasil reclamou na OMC em 2002 contra práticas comerciais adotadas pelos EUA e o relatório do painel só foi divulgado em 2004. Os EUA recorreram e a decisão do órgão de apelação só foi publicada em 2008. Um acordo entre as duas partes deu fim ao caso somente em 2014.
Mesmo assim, Lula indicou, há pouco mais de duas semanas, que o Brasil seguiria esse caminho. "Nós temos que recorrer à OMC. Você pode encontrar um grupo de países que foram taxados pelos EUA e, juntos, entrar com recurso na OMC", disse.
Nesta quinta-feira (31), um dia após o decreto de Trump, o governo reforçou a possibilidade. "Vamos recorrer nas instâncias devidas, tanto nos EUA quanto nos organismos internacionais", afirmou o ministro Fernando Haddad (Fazenda).
O vice-presidente Geraldo Alckmin disse que o comércio mundial deve seguir regras mínimas estabelecidas pela OMC, mas fez ponderações sobre o tempo do processo e a paralisia da última instância. "Eu tenho uma queixa e entro com uma consulta na OMC. Ela faz audiência, um processo mais demorado, e quem perdeu entra com recurso. Só que nessa área recursal os EUA não designam seus representantes, aí para e fica emperrado. Esse é que é o problema".
ENTENDA AS FASES DE RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS NA OMC
Consultas: fase inicial, em que a parte demandante solicita a outra informações sobre práticas comerciais e requer modificações seguindo as regras da OMC. A parte demandada tem 10 dias para responder. Sem uma solução em 60 dias, quem reclama pode pedir o estabelecimento de um painel.
Painel: são constituídos por três membros, escolhidos de comum acordo pelas partes. Os países apresentam petições escritas e participam de audiências. Ao final, o colegiado emite um relatório. Em teoria, o prazo é de 6 meses, prorrogáveis por mais 3. Na prática, tem durado cerca de 12 meses, mas pode durar até 5 anos em casos de maior complexidade.
Orgão de Apelação: caso discorde do relatório, o país pode contestá-lo no colegiado final da OMC, que revisa o documento. De 7 membros, 3 participam de cada controvérsia. As decisões precisam ser seguidas pelos países. No entanto, o órgão está sem quórum devido aos EUA, e qualquer apelação fica em um "vácuo".