Arquitetura e história

Casas antigas em BH ganham novos empreendimentos, e charme atrai clientela

Empresários recontam histórias desses locais a partir de projetos cheios de significado, mas que esbarram em muita burocracia na hora de reformar


Publicado em 04 de setembro de 2023 | 07:00
 
 
 
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Lajotas da década de 40, portas em pátina, tijolos à mostra, pintura do azulejo, estilo colonial… são muitos os detalhes que encantam nos casarões antigos, muitas vezes tombados, em Belo Horizonte. Os detalhes que fazem parte da história desses lugares ganham novos significados com a abertura de empreendimentos supercharmosos que estão tomando conta da capital. A ocupação desses espaços históricos é tendência, principalmente entre bares e restaurantes.

Empreendedores veem nesses lugares, para além da oportunidade de negócio, uma possibilidade de recontar histórias. E, para isso, vão atrás de pesquisas, dados, casos, tudo que relembre o que já foi aquele espaço. Mas muitos enfrentam burocracias, principalmente quando se trata de imóveis tombados – reformá-los depende de aprovação da diretoria de patrimônio da prefeitura ou do Estado (no caso de imóveis tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte, “para demolição, reforma, obra ou retirada de elementos construtivos (portas, janelas, telhados, paredes) de imóveis tombados ou com interesse de proteção do Patrimônio Histórico, é necessário o prévio licenciamento junto à prefeitura”. O Executivo municipal explica que os prazos para aprovação de projetos dependem da complexidade da intervenção e variam de três dias para manutenção emergencial a 52 dias para os casos que envolvam restauração de bens culturais, que são projetos mais complexos. 

Somando todos os processos, porém, incluindo licenciamento e tempo de reforma, a conclusão pode demorar meses. É o caso do Grumo Café, localizado na rua Rio Grande do Sul, em um imóvel construído em 1935 e que abrigou a unidade regional do Ministério da Cultura. Da decisão de alugar imóvel até a abertura do empreendimento, foi quase um ano. Inaugurado em dezembro de 2022, o local passou por reformas, principalmente no quesito acessibilidade.

Grumo Café ocupa imóvel da década de 40

Luiz Felipe Torrent, sócio do empreendimento, conta que a aprovação da rampa de acesso, que fica na entrada da casa, foi um dos pontos que mais demandaram atenção para a aprovação da diretoria de patrimônio (já que o imóvel é tombado pela PBH). Ela precisava ter harmonia com a arquitetura do lugar. “Graças a Deus, contei com a expertise de uma amiga que é arquiteta e especialista em patrimônio para fazer com que a rampa ficasse harmônica e o projeto fosse aprovado junto à prefeitura”, relata Luiz. 

O empreendedor conta que a história com o casarão foi amor à primeira vista. Sempre que passava em frente ao local, algo chamava a atenção. Até que um dia a mãe dele deu a ideia de unir o útil ao agradável e aproveitar que estava para se casar e alugar o imóvel. Hoje, ele e a esposa moram no local e dividem espaço com o negócio, especializado em alimentação natural e ingredientes especiais. “Eu gosto de imaginar que um café especial é um novo futuro para o café, então, usar uma casa do passado é simbólico, é mostrar que a gente pode construir um futuro diferente dentro de um mesmo espaço”, diz.

Esse cuidado com a arquitetura do lugar também teve que ser observado pelo engenheiro François Rahme, da F2 Construtora e Incorporadora. Ele é responsável pelo empreendimento que ocupa o terreno da Casa Ferolla, palco da edição da Casacor deste ano, na rua Domingos do Prata, no bairro Santo Antônio. No local, está sendo construído, em parceria com a Arthros Incorporadora, um edifício residencial, e a casa, construída na década de 40, será o espaço de lazer do empreendimento.

Rahme explica que, para a construção do prédio, foi necessário muito estudo e muito cuidado para que o imóvel ficasse harmônico com a casa, que é tombada. O projeto conta, inclusive, com a assinatura do antigo morador do imóvel: o arquiteto José Eduardo Ferolla (que faleceu em abril deste ano). “Todos os elementos de acabamento foram preservados: do corrimão da escada ao piso e as cores”, conta. “A torre conversa com a casa, desde as cores, definição de esquadrilha, fachada, ou seja, ela tem uma harmonia muito sintonizada com a arquitetura da casa tombada e do prédio contemporâneo”, explica.

Preservação do patrimônio histórico

Quem também enfrentou burocracias relacionadas ao patrimônio histórico para abrir um negócio foi Raphael Quick, um dos sócios da Cervejaria Viela, que tem hoje três estabelecimentos que funcionam em imóveis antigos. O empresário enxerga nesses espaços uma oportunidade para preservar o patrimônio histórico. No entanto, para ele, a burocracia atrasa demais a abertura dos negócios e, para algumas pessoas, pode ser complicada essa espera.

“Há quem não aguente nove meses fechados. Na realidade do empreendedor pequeno, ele não aguenta. Eu acho que o jeito que a coisa é desenhada realmente antagoniza, é uma oportunidade perdida”, critica. Mesmo assim, para ele, ocupar espaços antigos e cheios de histórias é oportunidade para se destacar. “Uma das maiores dores do empreendedor é ser visto, notado. Tem muito projeto por aí. Quando você fala de bar, quantos bares tem na cidade? O que faz o bar se destacar? E, aí, eu acredito muito que quando a gente olha para a história, para a memória, olha também, invariavelmente, para a identidade. O que faz o lugar que a gente está ser único. A gente tá falando dos ativos”, diz.

Para Quick, se o poder público enxergar esses espaços como possibilidade de atrair investimentos para a cidade, haverá uma contribuição para o empreendedorismo local. Além disso, a agilidade nos processos ajudaria a incentivar cada vez mais esse tipo de investimento. “Tudo que eu tenho feito é uma prova de que usar o patrimônio como ativo para construir negócios relevantes funciona”, afirma.

Propostas dos empreendimentos conversam com a arquitetura local

Entre os empreendimentos da Cervejaria Viela está a pizzaria Forno da Saudade, que ocupa um casarão cheio de histórias no bairro Carlos Prates, e que faz parte do Conjunto Urbano formado pelos bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates. O imóvel fica em um local onde havia uma colônia agrícola. Quick conta que a ocupação do espaço vai além do casarão e considera, ainda, a praça que fica em frente. Há um projeto de cuidar da área verde, jardinagem, plantio de horta urbana e trazer a aproximação das pessoas com a terra.

Fachada do Forno da Saudade

No bairro Pompeia, região Leste, o Juramento 202 foi o primeiro projeto da cervejaria. O imóvel, que ficava na esquina da fábrica, foi colocado para alugar e os sócios viram a oportunidade de expandir o negócio. Foi quando decidiram abrir um bar, com cara de mercearia de bairro, estilo boêmio e que respeita as características que o espaço já tem. Por lá, o investimento foi de R$ 65 mil, suficiente para botar o negócio para funcionar.

“A gente tinha um projeto que era pequeno, artesanal, que trabalhava com produtores, fornecedores familiares. Qual outra forma mais fácil de assimilar esse projeto do que uma mercearia antiga? Você não precisa explicar. Na verdade, aquela história já estava ali e as pessoas já entendem aquele lugar como um símbolo”, diz. “Eu acredito muito que quando a gente olha para a história, a gente olha para o que faz a gente ser único”, diz Quick.

Outro projeto da cervejaria foi a ressignificação do Mercado Novo como “point” boêmio de BH. Por lá, os sócios foram atrás da história do lugar para dar novo significado e trazer de volta o público frequentador. O investimento da Viela no Mercado foi de cerca de R$ 180 mil, além de muito trabalho de campo para retomar a história do lugar, que ficou vários anos esquecido. 

A iniciativa foi tão bem-sucedida que dezenas de outros empreendimentos seguiram os mesmos passos no espaço que se tornou referência na capital. Como o Copa Cozinha, uma casa de café da manhã e brunch que aposta na afetividade para atrair os clientes. Quando o espaço de 12m² no Mercado Novo ficou pequeno demais para os sonhos das sócias, as proprietárias do café saíram em busca de mais um lugar que se encaixasse na proposta do empreendimento. Até que encontraram uma casinha colonial na avenida Francisco Sales, dentro do chamado Conjunto Urbano Bairro Floresta. E o imóvel, com cara de casa da vovó, caiu “como uma luva”.

Unidade do Copa Cozinha fica no bairro Floresta

“A gente tinha certeza que tinha que ser uma casa antiga para compactuar com tudo que é a Copa Cozinha e fazer esse resgate de memórias”, explica Cristina Gontijo, uma das sócias do espaço. Ela conta que o imóvel é de uma família antiga no bairro e todos abraçaram a ideia do espaço. Inclusive, a proprietária, de 90 anos, é frequentadora do café e acompanhou cada passo da reforma de pertinho.

Durante a reforma (que foi relativamente simples), as sócias trabalharam para manter as memórias do lugar, buscando inclusive os mesmos azulejos antigos que compunham alguns ambientes. O investimento no empreendimento foi de R$ 250 mil. No Mercado Novo, o investimento havia sido de R$ 60 mil.

Investir em memórias é tendência

A arquiteta e membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo Edwiges Leal lembra que o movimento de ocupação de imóveis antigos não é novidade, mas ganhou um “gás” nos últimos anos, puxado pelos movimentos da gastronomia. “A gente vem numa crescente de uma cultura de boa comida, de uma gastronomia de cada vez mais de qualidade, feita com afeto, com novidades, com releituras de receitas tradicionais. Não tem melhor escolha do que ressignificar um lugar que foi uma casa ou um edifício, é muito mais charmoso do que entrar num restaurante sem identidade”, diz.

“Tem muito imóvel vazio e tem muito desperdício de material de construção. Eu acho que a gente tem que construir menos e aproveitar mais, reciclar mais. Aí você não só recicla a construção como recicla o uso, ressignifica, conta a história que já passou ali e eu ocupa o lugar”, opina. “As pessoas gostam de ver um piso de madeira, uma construção que foi feita diferente, os ambientes da história. Isso traz um charme, um aconchego. As pessoas se sentem bem”, comenta. 

Edwiges lembra que a ocupação desses espaços contribui para a manutenção dos patrimônios. Além disso, ela prega o equilíbrio entre o “velho” e o “novo”. “Precisa existir um equilíbrio entre verticalizar e demolir e manter uma memória, porque senão fica tudo muito vertical, muito sem alma”, comenta. Ela cita, por exemplo, imóveis que foram “espremidos” pelas construções de edifícios, mas que precisam ser preservados. “A casa isolada merece ser preservada porque tem um detalhe, um estilo marcante. Às vezes, morou ali a família de um presidente, de um governador. Ela é inequivocamente um edifício histórico cultural que tem que ser preservado para memória da comunidade da cidade”, comenta.

A especialista cita ainda os conjuntos urbanos que são monitorados pela diretoria de patrimônio, como é o caso dos localizados no Floresta e no Carlos Prates. A arquiteta explica que a intenção desses conjuntos é preservar a região como um todo e, por isso, uma reforma em imóveis desses bairros exige passar por burocracia, mesmo que não haja tombamento. “Já outras casas que são de época, às vezes nem tão exuberantes, elas formam um conjunto, um quarteirão que lembra todo um clima urbanístico, toda uma vivência, do passeio na calçada, da convivência familiar, do modo de vida daquele bairro”, diz.

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