Erros após erros

Cobrança indevida e mais abusos: como as teles lucram com prejuízo do consumidor

De 2012 a 2022, a Anatel instaurou cerca de 16,3 mil processos com multa contra empresas de telecomunicações, com um valor aproximado de R$ 3,2 bilhões; mas elas só pagaram R$ 215,7 milhões, pouco menos de 7% do volume original


Publicado em 16 de janeiro de 2023 | 06:00
 
 
 
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Contas de telefone que incluem serviços que não foram mencionados pelo vendedor, pacotes de TV por assinatura que acrescentam programas que o cliente não pediu e cobram por isso, operadoras de telefonia fixa que continuam enviando faturas ao cliente que cancelou o serviço e até negativam o nome dele se não forem pagas. Esses são alguns dos milhões de problemas que consumidores enfrentam rotineiramente com as empresas de telecomunicações no Brasil. Eles são conhecidos dos próprios clientes, da mídia, da Justiça e do governo, mas continuam na casa do milhão ano após ano, sustentados pelo poderio e do setor, para o qual multas e processos representam uma pequena fração de lucros milionários.

“Quando têm um problema, primeiro as pessoas ligam para as empresas, depois vão ao Procon e, quando não aguentam mais, vão ao juizado. Para grandes empresas, que patrocinam Fórmula 1, o que é caríssimo, e fazem propaganda no horário nobre da ‘TV Globo’, isso é pouco. O acesso à telecomunicação e a bens de consumo cresceu muito. Ao mesmo tempo, as condenações para as empresas são pequenas. É aquela coisa de que o crime compensa”, avalia a juíza do Juizado Especial Cível de Belo Horizonte Beatriz Junqueira.

Alguns consumidores levam suas reclamações às últimas consequências e entram na Justiça para garantir seus direitos e ser ressarcidos quando são prejudicados. Já outros, inclusive ouvidos pela reportagem, encontram erros, mas os deixam passar sem reclamar, ou tentam negociar diretamente com a empresa, após meses de problemas. Nesse cenário, elas ganham se uma cobrança indevida não é apontada pelo cliente e, quando são ameaçadas por multas ou processos, brigam com unhas e dentes para não perder dinheiro.

De 2012 a 2022, a Anatel instaurou cerca de 16,3 mil processos com multa contra empresas de telecomunicações, com um valor aproximado de R$ 3,2 bilhões. Levando os processos até as mais altas esferas do Poder Judiciário, segundo a agência, as empresas conseguiram diminuir os valores e, na prática, pagaram R$ 215,7 milhões em multas em uma década, pouco menos de 7% do volume original. Quando são provocadas na Justiça, elas também lutam para pagar o mínimo possível, descreve a juíza Beatriz Junqueira.

“Alguns advogados das empresas chegam com defesas pré-prontas. A pessoa nem está reclamando sobre danos morais e os advogados dizem que não houve esse ano, por exemplo. Mas, na grande maioria dos casos, as empresas têm se esforçado juridicamente para não perder a causa. Pode até ser que ela não traga provas de que está certa, mas o direito ela estuda. Elas estão muito especializadas. A impressão é que advogados elas têm, mas não pessoal para atender [os clientes]”, diz a magistrada.

A advogada Cristiane Araujo, habituada a casos no setor, explica que, muitas vezes, as empresas conseguem um acordo com os clientes rapidamente quando são levadas à Justiça. “O oferecimento de produtos, essa insistência, ainda são práticas vantajosas financeiramente, o que justifica sua manutenção. Como são ações de pequeno valor, elas são encaminhadas ao Juizado de Pequenas Causas. Geralmente, a companhia já tem um preposto, uma pessoa contratada especificamente para tratar daquelas demandas. Elas já têm valores de parâmetro de pagamento e fornecem um acordo para diminuir o prejuízo que sabem que terão em uma apreciação na Justiça. A maioria das pessoas aceita, porque não é uma condenação que elas querem, mas que as ilegalidades cessem. A questão não é a indenização, mas que o que foi contratado seja cumprido”, pontua.

A juíza Beatriz Junqueira também destaca que os valores pagos aos clientes não costumam ser altos — na casa de menos de R$ 5.000, segundo os casos que ela acompanha. Já as decisões sobre o direito coletivo têm volumes mais elevados. Na última semana, o Procon do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) multou a Vivo em quase R$ 5 milhões por não entregar a totalidade da franquia de dados contratada pelos clientes. A empresa argumentou que os pacotes são cobrados por megabytes e não por dias de utilização. Além disso, segundo ela, alguns aplicativos podem consumir dados mais rapidamente. O Procon considerou, no entanto, que a prática infringe o Código do Consumidor e outras leis e resoluções federais. Outras operadoras têm recebido multas milionárias. Em julho de 2022, o MPMG multou a Vivo em R$ 10,8 milhões por ela cobrar o valor integral do plano controle mesmo quando o cliente solicitava o cancelamento antes do fim do período.

Casos individuais também ilustram a variedade de problemas causados pelas empresas de telecomunicações. Em 2020, por exemplo, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) condenou a Sky a pagar R$ 10 mil a uma consumidora por ter inserido o nome dela no cadastro de inadimplentes devido a uma dívida que ela disse não ter contraído. A empresa chegou a admitir que talvez a mulher tivesse sido vítima de uma fraude de algum estelionatário, mas mesmo assim cobrou a mensalidade.

Em vez de multas, serviços: Anatel tenta converter más práticas em investimento

Com um volume tão vultoso de multas, hoje a Anatel busca reverter esse dinheiro a benefícios mais diretos para a sociedade e cogita, em alguns casos, cobrar serviços, em vez de dinheiro das empresas, explica o gerente de Tratamento de Solicitações da agência, Augusto Katagiri. “É uma iniciativa de tentar transformar as multas pecuniárias [cujo pagamento tem que ser feito em dinheiro] em obrigações de fazer. A Anatel tem começado uma linha nesse sentido. Por exemplo, em vez de uma multa de R$ 100 milhões, determinar que a empresa instale antenas onde, em princípio, não instalaria, em localidades que não seriam viáveis, como rodovias, e agregar valor ao setor. Isso obriga a prestadora a investir um dinheiro sobre o qual não terá retorno e atende uma população que estaria desassistida”.

Enquanto isso, o consumidor pode tentar se proteger dos abusos rotineiramente. Deveria ser trabalho das empresas, e não dele, garantir que a cobrança pelos serviços esteja correta. Mas, com uma tradição de pouca transparência no setor, reflete a advogada Cristiane Araujo, o consumidor pode se preservar redobrando a atenção ao contratar um serviço. “É muito importante não prestar atenção só ao que é falado no momento da venda, mas olhar se o contrato tinha realmente outros valores do que foi dito. Há casos em que o oferecimento na propaganda é um e, no contrato, estão outros valores, então o judiciário considera o que está no contrato”, alerta. A reportagem entrou em contato com as empresas para responder os questionamentos dos consumidores e aguarda as respostas.

Resposta das operadoras

A reportagem entrou em contato com as operadoras e foi atendida pela Conexis, associação que representa as principais prestadoras de telecomunicações (Algar, Claro, Oi, VIVO, TIM e Sercomtel). Confira a nota da associação na íntegra:

"O setor de telecomunicações tem mais de 340 milhões de acessos entre celulares, banda larga fixa, telefone fixo e TV por assinatura. Mesmo com o aumento da demanda, que se intensificou a partir de 2020 com a pandemia da Covid-19, as reclamações de usuários de serviços de telecomunicações registradas na Anatel têm apresentado sucessivas quedas, com reduções de mais de 15%, desde abril de 2021.

Em novembro do ano passado o número de reclamações caiu 29% em relação a novembro de 2021. As reduções nas reclamações também são verificadas em outras plataformas, como a Consumidor.gov.

Os resultados refletem diversas ações do setor, entre elas a ampliação de seus canais digitais, e a criação do canal da Ouvidoria, para melhor atender seus milhões de clientes e manter em alta a resolutividade de todas as demandas".

 

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