A arte das drag queens está costurada na colcha de retalhos da cultura popular do Brasil há décadas. Hoje, os nomes de Gloria Groove e Pabllo Vittar estampam o topo da lista de artistas dos maiores festivais de música do país. Décadas antes disso, nos anos 90, Vera Verão, personagem icônica de Jorge Lafond, brilhava na TV. Em Minas, os palpites de Kayete e Nayla Brizard no rádio foram eternizados no imaginário dos belo-horizontinos. As drag queens estão nos palcos, nas baladas, na televisão e na economia. Além de arte, montar-se é trabalho. E só o dom não basta: para tentar viver do que amam, artistas transformam-se em empreendedores e movimentam a cena LGBTQIAPN+ em BH.
Dezenas de drags estarão no palco durante a 24ª Parada do Orgulho, celebrada em Belo Horizonte neste domingo (09/07), a convite do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (Cellos/MG). O momento é de festa e política, mas também de movimentar a economia. A cidade investiu R$ 300 mil na realização do evento, por meio de emenda parlamentar, e a prefeitura estima que ele movimentará R$ 19 milhões no turismo e outros setores, salto de quase 73% em comparação à edição anterior.
A temporada também é de incremento de renda para drag queens de BH, que fecham parcerias com baladas e outros eventos na esteira da celebração. Ao longo desta reportagem, você conhecerá sete expoentes dessa arte na capital, como Charlotte, que organizou um coletivo de artistas para criar seus próprios eventos, e Mannu Mallibu, que alcançou seguidores na casa do milhão nas redes sociais e, hoje, vive de seu conteúdo. Você também conhecerá a história de quem, por meio da arte drag, descobriu-se trans, e de nomes tradicionais da noite belo-horizontina, conhecidos por gerações.
Mas, antes dessa lista e para quem não sabe, o que é drag queen?
O “D” de drag queen não está na sigla LGBTQIAPN+. Isso porque drag é uma arte e não uma identidade de gênero ou orientação sexual. Homens e mulheres podem ser drag queens: geralmente, a transformação consiste em expressar símbolos associados ao gênero feminino de uma forma exagerada. Mas há muitas outras formas de expressão e artistas podem brincar com a ideia de gênero para além da divisão entre feminino e masculino. Por essa brincadeira com padrões, a arte se popularizou na comunidade LGBTQIAPN+.
A semente do drag é de milhares de anos atrás, quando homens se fantasiavam para representar mulheres em teatros da Grécia, Roma, China e Japão. Mas as drag queens como conhecemos hoje têm raízes mais recentes. Elas eram o centro dos ballrooms, bailes LGBTQIAPN+ que começaram há pelo menos seis décadas nos EUA e reuniam homens e mulheres gays, lésbicas, transexuais e outras minorias em uma espécie de desfile de moda. Foi neles que surgiu o voguing, estilo de dança imortalizado no videoclipe “Vogue”, de Madonna.
A explosão pop das drag queens chegou com a estreia do reality show norte-americano “Rupaul’s Drag Race” em 2009. Apresentado por RuPaul Andre Charles, hoje com 62 anos, o programa está no ar desde então e faz drag queens competirem por um prêmio de US$ 100 mil a US$ 200 mil — além de visibilidade, que pode render contratos de outras centenas de milhares de dólares e turnês mundiais.
Em 2023, o programa ganhará sua primeira versão brasileira, prevista para setembro, e os rumores na cena de Belo Horizonte são de que uma drag local pode estar no elenco. Procurada pela reportagem, o Paramount+, streaming que exibirá o show, não se pronunciou.
Depois dessa introdução, fique com a lista de 7 drags de BH:
1 - Charlotte
O início da trajetória do designer Matheus Brisola, de 29 anos, como a drag queen Charlotte em 2014 foi como o de tantas outras drags em BH: ganhando poucas centenas de reais para se apresentar em baladas na cidade e sem perspectiva de fazer dessa arte sua principal fonte de renda.
Hoje, ele tenta inverter essa lógica e criar suas próprias oportunidades com a Wig Events, um coletivo de drags que organiza eventos na cidade. Juntas, elas criaram a festa Wig Party, fazem exibições do programa “RuPaul’s Drag Race” em bares da cidade e estão levando uma peça de teatro, “Chronus”, a São Paulo. Outro projeto em que estão de olho é a criação de um brunch servido por drags, regado a muito café mineiro. Em grandes metrópoles, como São Paulo e Nova York, a atração já é tradicional.
“Eu percebi que nós, drag queens, precisamos estar envolvidas na produção dos eventos, sendo propositivas e criando espaço para outras drags. Quando há uma de nós envolvida na produção, mais perto dos produtores, facilita que eles entendam a nossa importância e a contrapartida que precisamos receber”, diz.
Como Charlotte, Matheus também criou o Baile da Bôta, festa de música tecnobrega que tem se tornado um emblema da música eletrônica na noite belo-horizontina e é uma das atrações confirmadas no Festival Sarará, por exemplo, que ocorre em agosto na esplanada do Mineirão.
“Drag, hoje, é meu grande objetivo profissional. Para além da questão financeira, é como eu expresso minha arte, a forma de comunicação que eu tenho com o público. E também uma possibilidade de transformação social, porque questionamos gênero de maneira leve, divertida, capaz de trazer outras pautas para discussão. Meu objetivo é que a drag seja minha fonte de renda principal”, conclui.
2 - Penélope Fontana
Na adolescência, Rodrigo Ferreira, de 34 anos, tinha dois amigos na vizinhança que se davam “nomes de guerra” em suas brincadeiras. O dele, “fresco e criado em apartamento”, como diz, era Penélope Charmosa, em referência à personagem do desenho animado “Corrida Maluca”. O apelido ficou e, anos depois, transfigurou-se em Penélope Fontana, nome da drag encarnada por Rodrigo desde os 19 anos.
“Na época, tínhamos artistas que viviam da sua arte, como a Nayla Brizard. Eu estava me formando no ensino médio e entendi que drag podia ser uma remuneração para mim. Não quis fazer faculdade ou curso técnico, apostei na carreira artística, porque as drags mais velhas viram potencial no meu trabalho”, conta. Sua madrinha na profissão foi Wandera Jones, drag de Nova Lima, na região metropolitana de BH, que se tornou uma referência internacional devido aos seus figurinos tecnológicos.
“Hoje, brinco que sou uma drag ativista. Quando sou contratada em aniversários, formaturas, sempre deixo uma palavra de conhecimento para as pessoas entenderem a importância de darem uma oportunidade a pessoas LGBTQIAPN+ nos espaços”, diz.
Eventos desse tipo, além de casamentos, são, hoje, um dos principais mercados de Penélope e de outras drags, que assistiram a várias baladas LGBTQIAPN+ de BH fecharem as portas na última década. “Consigo fazer cerca de 15 eventos por mês que não estão ligados à questão LGBTQIAPN+, em empresas, por exemplo. Hoje, sobreviver apenas de shows à noite é extremamente complicado”.
3 - Layla Miller
A drag queen Layla Miller, criação de Alexandre Rodrigues Vieira, de 28 anos, costumava ser “contratada e, hoje, contrata”, como gosta de dizer. À frente do Old Bar, ponto de quase duas décadas no bairro Santa Tereza, na região Leste de BH, ela tem um time de 15 drags que se revezam em apresentações às sextas e sábados na casa.
“Temos artistas trans, artistas que são cabeleireiros, rapazes que às vezes trabalham em obra de manhã e são drags à noite, temos drag que é pessoa com deficiência, é diverso”, descreve. Grande parte do público do bar, pontua Alexandre, não é LGBTQIAPN+. “Tem cliente que vem aqui e contrata um show para o aniversário. O bar nos dá visibilidade para conseguirmos ocupar outros espaços”.
4 - Dolly Piercing
No dia 28 de janeiro de 1995, com a identidade do irmão mais velho em mãos porque ainda não era maior de idade, Dolly Piercing fez sua estreia como drag em uma balada. “O dono me viu montada e convidou: não quer fazer um trabalho na semana que vem?”. E foi ali que sua trajetória de quase três décadas como drag começou. Muito antes disso, ainda na infância, o teatro abriu as portas da arte para Dolly. “Eu me trancava no banheiro e brincava com as roupas e maquiagens da minha mãe”, rememora.
Ela foi pioneira na cena de drags cantoras no Brasil e o rosto da banda Dolly & Piercings. Aos 45 anos, não encara a arte como mera fonte de renda, mas, sim, como sua maior forma de expressão. Ao longo dos anos como drag, descobriu-se travesti. Hoje estudante de teatro na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ela é uma das mentoras de um projeto de educação artística para pessoas trans.
“Tudo na minha vida é baseado em uma necessidade expressiva. Como vivemos no capitalismo, ficamos pensando que todo tipo de instrução é apenas para o mercado de trabalho. Mas a primeira necessidade que temos é a realização, pelo menos quando se tem essa opção. A necessidade de me expressar foi o que culminou na minha profissão”, conclui.
5 - Mannu Mallibu
Como outras profissionais, as drag queens também sofrem pressão para estar nas redes sociais e atrair o público. Para algumas, é um suplício, mas, para outras, um deleite. É o caso de Daniel Gerth, 25, conhecido como a drag Mannu Mallibu. Ele começou a se apresentar profissionalmente em 2019 e, durante um ano, conquistou espaço na noite de BH. Até que a pandemia chegou.
“Bateu aquela angústia, que acho que todos os profissionais da arte sentiram. Eu morava com meus pais, e eles conseguiam me sustentar na época, então comecei a fazer o que eu gosto, que é humor, produzindo conteúdo na internet”, diz.
No começo, ele se montava completamente para gravar suas esquetes de humor. Hoje, é raro que apareça totalmente vestido como Mannu em seus vídeos. “Quero ser visto, além de drag, como artista. É importante as pessoas terem consciência de quem está por trás do personagem, porque muita gente não entende até hoje o que é drag de fato”, diz.
Ele reúne cerca de 1,5 milhão de seguidores no TikTok e, com a renda gerada pelo humor, saiu da casa dos pais para morar sozinho. Agora, sonha em viajar o Brasil com espetáculos. “Desde que a Pabllo Vittar e a Gloria Groove chegaram, vemos como uma possibilidade maior chegar à mídia mainstream [o grande público]. Vejo isso para mim”.
6 - Fran Glam Glam
Como Charlotte, da Wig Events, e Layla Miller, do Old Bar, Fran Ferreira criou seu próprio caminho na cena LGBTQIAPN+ de BH. “A Eleganza surgiu da necessidade de palco para mim e algumas amigas que não tinham oportunidade. Frequentávamos mais a Savassi e não tínhamos a mesma oportunidade de quem frequentava as casas do centro”, diz. A Eleganza começou como uma festa movimentada por drags e, hoje, nove anos depois, é um símbolo da cena na capital.
Também conhecida como Fran Glam Glam, ela encontrou um caminho na moda e costuma ser presença confirmada no Minas Trend, principal evento do setor fashion no Estado, por exemplo. “Eu vivo do que a Eleganza me proporcionou, a partir da festa e das outras oportunidades que ela me proporciona”, pontua.
Como drag, ela se descobriu trans. Não revela a idade e não dá sinais de que abandonará a arte tão cedo. “Na hora em que você está montada, tem autoconfiança, você se encontra”, diz.
7 - Nayla Brizard
A primeira apresentação de Nilo Faustinon como Nayala Brizard completa três décadas em 2023. “Meu primeiro show de drag foi em 1993, na Boate Fashion, eu tinha 23 anos e não fazia ideia de que isso viraria uma profissão, para mim era tudo só uma brincadeira”, rememora. Hoje, seu nome artístico é inescapável na história das drag queens de BH, e basta dizer “Nayla Brizard” para evocar a memória de quem acompanhou sua trajetória nas baladas, nos palcos e na rádio.
Até se tornar uma referência, o caminho foi longo: “Decidir parar com os meus trabalhos paralelos e focar só na arte demorou uns sete anos. Até então, eu conciliava o meu trabalho de garçom com a arte drag, que, na época, era chamado de transformista. Quando um trabalho começou a atrapalhar o outro, optei por fazer o que eu mais gostava”.
A artistas iniciantes, ele oferece conselhos. “A arte drag é um trabalho como outro qualquer. Você precisa ter, além do dom, muito amor, dedicação e disciplina. O mercado ficou direcionado, durante um tempo, a boates de seguimento LGBTQIAPN+ por ser mais fácil. Hoje, essas boates não têm tantos shows como antigamente, mas eu busquei outros públicos para apresentar minha arte. Trabalhei em duas emissoras de TV e em duas de rádio, fui para o teatro, faço animação e apresentação de qualquer tipo de evento”. Drag, como ele mostra, está em todo lugar.
24ª Parada LGBTQIAPN+ de BH
- Onde: praça da Estação, no centro.
- Quando: domingo, 09 de julho, a partir das 11h.
- Atrações: acompanhe a programação no perfil do Instagram do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (Cellos/MG):