Tragédia anunciada

Escassez de mais de meio milhão de casas

Precariedade de programas habitacionais no país joga famílias para áreas de risco

Por Queila Ariadne
Publicado em 09 de fevereiro de 2020 | 23:13
 
 
 
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Aos seis meses de gestação, quando Larissa Coelho de Souza, 17, escolheu como a filha se chamaria, nem imaginava que, às vésperas do parto, teria que sair às pressas de sua casa, inundada pela enchente do ribeirão da Prata, em Raposos, na região metropolitana, no dia 24 de janeiro. Seis dias depois daquela chuva, que deixou um terço dos moradores da cidade sem condições de voltar para suas moradias, nasceu Yara, que, em tupi-guarani, significa ‘senhora das águas’. “Eu nem sabia. Foi uma coincidência, mas acho que protegeu, né?”, conta Larissa, que, dois dias depois do nascimento, foi obrigada a levar a menina para a sala de aula de uma escola municipal, improvisada como abrigo.

Larissa faz parte de um déficit habitacional que, segundo a Fundação João Pinheiro (FJP), chega a 575 mil moradias em Minas. Ela, o marido e Yara estão entre as 6.000 pessoas que, após o temporal, ficaram desabrigadas ou desalojadas em Raposos. “Como eles têm um recém-nascido, são prioridade na nossa tentativa de encaixar no programa de aluguel social”, afirma a secretária de Desenvolvimento Social de Raposos, Ana Mota.

Sem dinheiro para lidar com o problema, Ana explica que a prefeitura depende de recursos do Estado e da União. Para ajudar municípios em situação de emergência ou calamidade pública, o Estado antecipou três parcelas do Piso Mineiro de Assistência Social Fixo, totalizando R$ 5,04 milhões para todas as cidades. “As nossas parcelas são baixas, em torno de R$ 10 mil, o que daria para alugar cerca de 20 casas, o que dá mais ou menos 10% só no déficit habitacional gerado depois dessas chuvas”, explica.

Segundo ela, mesmo se a prefeitura tivesse recursos, não teria onde colocar essas pessoas. “O aluguel social só permite que o imóvel seja alugado dentro do município afetado. Atualmente, não tem nada disponível fora de área de risco. Estamos engessados”, lamenta. A solução eficiente seria a construção de moradias populares, no entanto, a necessidade é imediata. “Me sinto em um labirinto. A única saída é construir. A prefeitura não tem dinheiro, mas tem como conseguir uma área. Só que falta política de habitação social”, afirma.

O problema é o mesmo em Sabará, também na região metropolitana. “Não tem onde colocarmos todos os que perderam casas ou não têm condições de voltar. Vamos analisar caso a caso para ver quem podemos encaminhar para o aluguel social. Só que essa medida foi criada para ser temporária, e, por isso, não podemos alugar para pessoas que não têm para onde voltar”, explica a secretária de Desenvolvimento Social de Sabará, Nívea Soares da Silva.

Para ela, a solução seria mais investimento em políticas de habitação social. “Não existe hoje um programa que pense na construção de moradia para pessoas que não têm renda. Acho que o Minha Casa Minha Vida poderia ser aperfeiçoado para a população que não tem renda, vive da informalidade e vai morar na beira do rio e em cima de barrancos”, diz Nívea. Quando a chuva passar, a prefeitura vai doar material para as famílias reconstruírem ou reformarem as casas afetadas.

Solução vai além de construir moradias

Isabela Rezende, 22, mora com o marido e a filha de 4 anos à margem do rio das Velhas, em Sabará. No dia do temporal, ela, que depende de cadeira de rodas, precisou ser retirada pela janela com a ajuda do marido e de um vizinho. “Eu só pensava em salvar minha filha”, lembra. A cadeira, que ainda está sendo paga, estragou na enchente. “Perdemos tudo. A cozinha está quase caindo. Nós não temos para onde ir. Então, o jeito é ficar aqui”, conta.

A pesquisadora da Fundação João Pinheiro (FJP) Raquel Viana ressalta que as políticas de habitação social são fundamentais para combater o déficit e, consequentemente, amenizar impactos de tragédias como a das recentes chuvas. Entretanto, a solução vai muito além. “É preciso pensar a política de habitação em um sentido mais amplo, como um eixo importantíssimo da política urbana, que contempla também saneamento e mobilidade”, diz.

Raquel ressalta ainda que não adianta conseguir construir uma moradia nos padrões seguros de arquitetura se ela oferecer um custo alto com transporte para o trabalho. Por isso, a solução é de política urbana. “Um exemplo disso é que a região Centro-Sul de Belo Horizonte foi afetada não devido às moradias, mas porque foi construída em cima do córrego do Leitão”, afirma.

Sem opção

“Nós perdemos tudo. Depois da enchente, a cozinha está cai não cai. Nós não temos para onde ir, então o jeito é ficar aqui. Se alguém oferecesse um lugar para morarmos, nós iríamos.”

Isabela Rezende, 22
Desabrigada

Descaso

“Eu acho que o governo desperdiça muito o dinheiro do povo. Ele podia ajudar a gente, fazer casas mais seguras e tirar quem está correndo risco em barranco, na beira do rio, antes de acontecer.”

Larissa de Souza, 17
Desabrigada

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