Em 1968, Lúcia Murat entrou na luta armada contra a ditadura, como integrante do MR-8. Três anos depois, foi presa e torturada. Um episódio em particular motivou a realização do filme “O Mensageiro”, em cartaz a partir de hoje nos cinemas, quando ela teve ajuda de um militar, no DOI-Codi do Rio de Janeiro, onde estava encarcerada, para poder se comunicar com os familiares.
“O fato de a gente ter um presidente que glorificava a ditadura e a tortura traz a necessidade em querer mostrar o horror que era aquilo. Em função disso, me veio à cabeça uma coisa que aconteceu comigo, quando um soldado se dispôs a levar uma mensagem para minha família, o que foi fundamental, porque eu estava dois meses desaparecida”, registra Lúcia, diretora do filme.
A temática surge com frequência na trajetória da cineasta, traduzida em longas-metragens premiados como “Que Bom Te Ver Viva” (1989) e “Quase Dois Irmãos” (2005). Em “O Mensageiro”, é Valentina Herszage quem personifica a história da presa política que recebe a ajuda de um jovem soldado (Shico Menegat) para trocar mensagem com a mãe, vivida por Georgette Fadel.
“Isso aconteceu comigo, com Caetano (Veloso) e Cecília Coimbra, que falam sobre isso nos livros deles. O Brasil teve uma especificidade, com esses centros de tortura sendo montados em quartéis. Até tinham soldados que estavam recebendo aquela lavagem cerebral toda, mas alguns deles conseguiam ter um momento de empatia com aquelas vítimas”, registra a realizadora.
Ela destaca uma observação feita por Menegat durante um debate, sobre romper com um discurso que a ala mais conservadora tenta uniformizar, afirmando que aqueles soldados não eram uma massa só. “Em nenhum momento eu defendo a necessidade de julgá-los e o problema que foi, para o Brasil, não ter tido esse julgamento. Antes de tudo, o filme levanta muitas questões. É muito difícil a situação que a gente está vivendo, não só no Brasil, mas no mundo”.
Da preparação à filmagem, “O Mensageiro” foi totalmente feito durante a pandemia. Durante os ensaios, em especial, o isolamento contra o vírus da Covid foi importante para estabelecer o sentimento da separação dos presos em relação a familiares e amigos. “A gente fez toda a preparação de elenco, que durou seis meses, por Zoom (aplicativo de vídeo), com os atores praticamente se conhecendo no set”, lembra Lúcia.
O trabalho com a preparadora Amanda Gabriel foi muito bom, porque a gente não conseguia se ver, mas tinha tempo disponível, encontrando três vezes por semana para construir esses personagens. A ideia não era só discutir o roteiro, mas discutir o que cada personagem era, na infância, na adolescência e na relação com a família. Isso não está no roteiro, mas transparecia nos momentos de silêncio”.
A diretora faz questão de frisar que não se trata de um filme autobiográfico, embora algumas situações foram inspiradas na realidade. “Minha família é bem diferente daquela que está no filme. É óbvio que tirei muita coisa da minha mãe. Tem uma cena, que eu adoro, inspirada nas vezes em que ela leva todos os meus diplomas para dizer o quanto eu era boazinha”, revela.
Um aspecto que Lúcia Murat reforçou no filme é a representação de mulheres fortes. “As mulheres que viveram isso, as mães que viveram isso, se transformaram muito. Mulheres que, basicamente, eram donas de casa e, diante daquilo, se transformaram. Essa capacidade de se arriscar tremendamente, mesmo não vendo racionalmente que aquilo está tendo efeito, é uma coisa muito maternal”, pondera.
Mais até do que a ditadura, a espinha dorsal de sua filmografia é a violência. “É uma questão que está dentro de mim. É impossível, aos 20 anos de idade, na transição da adolescência para a fase adulta, ter vivido um processo de violência e isso não fazer parte de sua preocupação pelo resto da vida. Queria saber quem é esse homem que me torturou. Ele é humano? É monstro? É algo que fica para o resto da vida”.