Em 53 edições do Festival de Gramado, uma das premiações mais importantes do calendário cinematográfico brasileiro, somente cinco nomes subiram ao palco mais de uma vez para receber o Kikito de Melhor Atriz. Uma delas é a mineira Fernanda Vianna, que entrou para o seleto grupo no último dia 23, ao receber, na serra Gaúcha, a estatueta por sua performance em “Cidade; Campo”, com estreia hoje nos cinemas.

A proximidade da premiação com o lançamento do filme jogou ainda mais holofote sobre uma devota do palco que, nas poucas incursões que fez na tela grande, chamou a atenção dos jurados. Coincidência ou não, a primeira láurea em Gramado, em 2012, por “O Que Se Move”, veio com um longa-metragem gestado na mesma produtora de “Cidade; Campo”: a Dezenove Som e Imagens, de São Paulo.

“O reconhecimento é muito bom nesse ofício da gente, que é tão instável e fugaz. E há uma coerência (no segundo prêmio), porque o outro filme foi dirigido por Caetano Gotardo, com produção da Sara Silveira e montagem de Juliana Rojas, que é quem dirige ‘Cidade; Campo’. É a mesma turma. Na entrega do prêmio, eu agradeci aos três, que foram os responsáveis por eu estar ali”, salienta Fernanda.

Na Terra da Garoa, ela acabou sendo levada para dois personagens que têm muito em comum, com o público sendo apresentado a mães que sofrem perdas importantes. Em “O Que Se Move”, ela tem um filho raptado e nunca mais o vê. Em “Cidade; Campo”, perde o chão, literalmente. Joana, o papel de Fernanda, chega a São Paulo para morar na casa da irmã, após ter toda uma vida levada pela lama.

"Faço uma mineira que perde tudo num rompimento da barragem de uma mineradora. Ela perde casa, animais, cidade... E a única coisa que sobra, a única ponte com a vida que tem, é uma irmã que mora em São Paulo”, define Fernanda, ressaltando que em nenhum momento é dito o nome do local, embora o Estado tenha passado por duas grandes tragédias, em Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019.

“O rompimento não é o mote do filme. Se fosse, a Juliana teria que fazer um filme só sobre isso. Mas é o que impulsiona a personagem a (fazer) essa migração. O que interessa aqui é perceber como uma pessoa, após um luto muito grande, consegue se refazer num lugar diferente”, comenta a atriz, de 59 anos, que começou a carreira inspirada pelo tio Klauss Vianna, enveredando primeiramente pela dança.

Em 1995, ela entrou para o Galpão, um dos mais importantes grupos teatrais do país, para substituir Wanda Fernandes – falecida num acidente automobilístico – na peça “Romeu e Julieta”. A trupe também foi lembrada no momento dos agradecimentos em Gramado. No cinema, curiosamente, atuou menos do que gostaria. Seus dois grandes papéis são justamente os realizados para a Dezenove Som e Imagens.

Inspiração vem de mulheres do interior

"Cidade; Campo” teve sua primeira exibição mundial no prestigiado Festival de Berlim, na Alemanha, onde a recepção às imagens de ruptura da barragem bateram forte no público. Na cidade do Rio Grande do Sul, não foi diferente. Em ambas, a tragédia mineira foi associada a catástrofes e acontecimentos atuais e marcantes.

“A única imagem que tem no filme é aquela lama varrendo tudo, que chocou muito o pessoal em Gramado por conta das enchentes e dos alagamentos. Em Berlim, falaram da personagem dizendo que ela poderia ser considerada uma refugiada climática. Joana é uma refugiada do capitalismo violento e desumano que se perpetua há séculos”, afirma.

Fernanda revela que a preparação foi baseada nos “terríveis e dolorosos relatos” de gente que, em Brumadinho, perdeu parte de seu passado, como as fotos da família e o vestido de casamento. “E até mesmo de gente que disse que tinha um filho no colo e outro na mão, mas que só conseguiu segurar um”, conta.

A atriz também diz ter se inspirado nas muitas mulheres que atravessaram o convívio dela, especialmente na infância. “Eram mulheres do interior, muito fortes, secas e duras. Mulheres que choram para dentro e, ao mesmo tempo, têm uma generosidade muito grande”, revela. Numa das mais belas cenas do filme, Joana canta para exprimir a sua saudade do cavalo Alecrim.

Soltar a voz não é nenhuma novidade para Fernanda, que já cantou em várias peças do Galpão e também em “O Que Se Move”. Em episódio de “Cidade; Campo”, há ainda mais uma cena musical, com Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer – elas também representaram o desafio de começar uma vida em outro lugar, fazendo o caminho inverso, da cidade grande para o campo, em Mato Grosso do Sul.