Igor Stravinsky, povos originários e darwinismo. À primeira vista, é difícil imaginar uma conexão entre essas três palavras. Mas como a bailarina Deborah Colker está acostumada a brincar com os limites do impossível – ela montou uma companhia de dança brasileira 30 anos atrás quando todos achavam isso loucura e foi primeira mulher a dirigir um espetáculo do Cirque du Soleil –, não foi exatamente espinhoso tecer uma trama que unisse o compositor russo às comunidades indígenas e ao evolucionismo.
O resultado dessa intricada costura se transformou em “Sagração”, espetáculo da companhia que leva seu nome e que estreia em Belo Horizonte, neste fim de semana, no Sesc Palladium, com sessão gratuita e exclusiva para alunos e professores nesta sexta (30). A estreia nacional aconteceu no Rio de Janeiro.
Mas o fato de não ter sido laborioso criar conexões entre os temas, não significou que o processo foi fácil. Foram necessários dois anos e meio para que o espetáculo chegasse aos palcos, passando pelo estudo obstinado de Stravinsky até uma viagem de dez dias ao Xingu.
Tudo começou por um desejo antigo de Deborah de trazer o compositor russo para a companhia. “Meus quatro avós são judeus russos, tenho a Rússia muito forte na minha vida. Na época em que eu estudava piano, ainda pirralha, me vi de frente com ‘A Sagração da Primavera’, de Stravinsky, e entendi a importância dela. Quando comecei a dançar nos anos 80, falei: ‘caramba, essa obra causou uma bagunça danada naquela época na música e na dança, porque foi escrita para a dança. Em algum momento, vou ter o dever de casa de trabalhar com ela’”, recorda-se.
Esta oportunidade finalmente chegou – e calhou de estrear justamente em 2024, ano em que a companhia completa três décadas de trajetória. “Mas se alguém perguntar se eu escolhi ‘Sagração’ para celebrar os 30 anos, eu estaria mentindo”, admite Deborah, sem não antes completar: “Mas acho difícil que a Deborah que conheço de três décadas atrás tivesse feito esse espetáculo.”
O primeiro movimento da coreógrafa para montar “Sagração” foi matutar como seria a adaptação da obra erudita. “Eu sentava como a Ana Luiza Marinho, uma jornalista e super amiga, que me dizia: ‘você tem que trazer ‘A Sagração’ para cá. Estávamos em um momento pós-pandemia, com as queimadas assolando o Brasil, e eu falei: ‘quero celebrar nossas riquezas e forças.’ Segui minha intuição e soube que queria trazer a obra para a floresta e para os povos originários, seria uma sagração brasileira”, rememora.
Então, Deborah “fez o que tinha ser feito.” Ficou cerca de sete meses estudando “A Sagração da Primavera” na íntegra, com partitura na mão e sem interferências externas, até compreendê-la em suas minúcias.
“É cheia de arritmias, de desestruturações musicais”, explica. Em parceira com o diretor musical Alexandre Elias, acrescentou à melodia Stravinsky a sonoridade das florestas e ritmos brasileiros, como afoxé e samba. Imbuída da música da cabeça aos pés, Deborah foi a campo. “Eu precisava de uma floresta, mas como montá-la? Então, tive ideia de trabalhar com bambu e comecei a brincar com ele, tal qual uma criança faria”, conta.
Para conseguir o material, a bailarina contou com a ajuda do diretor-executivo da companhia, João Elias. “Fui buscar 140 bambus em uma terra de Silva Jardim [cidade do Rio de Janeiro], onde há muitos deles. Em Goiânia, tivemos muita dificuldade, porque eles explodiam sozinhos por conta do tempo seco. Espero que, em Belo Horizonte, o clima esteja melhor”, comenta. Felizmente, neste fim de semana, a umidade relativa do ar por aqui vai estar na casa dos 30%.
Elias, que fundou a companhia ao lado de Deborah, a propósito, serviu de alicerce para a pianista. Ele admite que não é conhecedor da obra de Stravinsky, mas conta que, desde o princípio, botou fé no desejo da artista.
“Nunca tinha tido contato com a obra dele. Sou apaixonado pela música erudita, mas sou mais dos românticos, como Beethoven e Mozart. O sonho de trazer Stravinsky era da Deborah, e fui entender como ela queria transformá-lo, buscando sonoridade e luzes com as cores do Brasil. Daí, embarquei”, revela Elias.
Esse suporte incluiu a viagem ao Xingu, onde os dois passaram pela experiência do Kuarup – ritual fúnebre sagrado que ocorre todos os anos para homenagear parentes indígenas falecidos. Na visita, eles tiveram contato com as aldeias indígenas Kalapalo e Kuikuro.
“O Kuarup é uma festa indígena muito importante, pude ver as aldeias dançando, celebrando. Dormi em redes, não tinha banheiro…. Fiquei estes dez dias conversando com os indígenas, ouvindo as suas histórias. E isso foi muito importante”, relata Deborah.
Roteiro de 'Sagração'
Deborah Colker já tinha em mãos música e material, mas faltava a linha que teceria o bordado de “Sagração.” Ela, então, decidiu que traçaria a evolução do mundo, desde a sua criação, contada pelos mitos indígenas, judaicos e cristãos, até à teoria de darwinista de transmutação da espécie.
“Eu começo o espetáculo com a Avó do Mundo, mito da criação que faz parte da cosmovisão indígena Kuikuro. Nessa aldeia, eles imaginam que, no princípio, não existia nada, tudo era escuro. Tomada de grande sabedoria, esta anciã desenha uma esfera que será o mundo – o que prova, mais uma vez, que a Terra é redonda”, brinca Deborah, fazendo troça dos terraplanistas.
Na sequência, são apresentados ao público os organismos unicelulares. “Estou lá em Darwin, fazendo a cadeia evolutiva. Da bactéria, vamos crescendo até virarmos herbívoros e rastejantes. Então, nos transformamos em quadrúpedes, que é quando temos uma necessidade maior de sobrevivência: precisamos caçar. Neste momento, eu também trouxe um mito indígena da criação do mundo a partir da origem do fogo, em que se acredita que tudo começou no Planeta dos Urubus, no qual Urubu-Rei era o dono do fogo”, conta.
Depois disso, vem Abraão. “Ele é um personagem mítico da cosmovisão judaica-cristã superbonito, porque sai em busca de dele mesmo e precisa se desvencilhar da própria cultura e da terra de onde nasceu para ir atrás seu próprio destino”, diz. Nesse momento, os bambus viram canoa que atravessam águas desconhecidas.
Bambus estes, aliás, que do início ao fim do espetáculo, se transformam em oca, floresta, armas e em extensão do próprio corpo dos bailarinos. A montagem segue com a figura do agricultor, “meio andrógeno”, e finaliza com a volta da Avó do Mundo. “Então, faço a destruição da floresta, que tem a ver com o que estamos vivendo agora. É quando tacamos bambu para todo o lado”, adianta. “É como um grande pega-varetas”, arremata.
SERVIÇO
“Sagração”, da Companhia de Dança Deborah Colker
Quando. Sábado (31/8), às 21h, e domingo (1/9), às 19h)
Onde. Grande Teatro do Sesc Palladium (rua Rio de Janeiro, 1.046, centro)
Quanto. Ingressos disponíveis apenas para plateia IV, com valores de R$ 19,80 (meia-entrada) a R$ 39,60 (inteira)