A felicidade de Jorge Bodanzky é dupla. Ao mesmo tempo em que vê, aos 82 anos, um novo trabalho chegar às telonas, com o documentário “As Cores e Amores de Lore”, em cartaz no Belas Artes e no Minas Tênis, a sua obra mais celebrada, “Iracema: Uma Transa Amazônica”, que está completando cinco décadas neste mês, ganha exibição especial no tradicional Festival de Berlim, nesta semana.

“Por um lado, estou feliz de o filme ainda chamar a atenção, de as pessoas se interessarem por ele. Está magnificamente bem restaurado, com uma qualidade incrível de imagem e de som – o restauro que foi feito na Alemanha a partir dos originais que a gente localizou. E tem o outro lado, que eu diria ser triste, porque tudo, absolutamente tudo, que o filme denuncia está igual ou pior”, observa.

Um dos filmes mais importantes do cinema brasileiro, sempre presente nas listas de melhores de todos os tempos, “Iracema” tem um formato híbrido, misturando ficção com documentário ao retratar o impacto social da criação da estrada Transamazônica, inaugurada em 1972, com 4,2 km de extensão. Paulo César Pereio faz um caminhoneiro confiante nas melhorias que a nova estrada vai gerar.

Em Belém, ele se envolve com uma prostituta adolescente (vivida por Edna de Cássia, que nunca havia tido experiência com atuação), que passa a acompanhá-lo na viagem. Dirigida por Bodanzky e Orlando Senna, a produção mostra uma realidade distinta do que pregava o “milagre econômico”, colocando uma lupa em problemas como desmatamento, queimadas, trabalho escravizado, prostituição infantil.

“Não tem nenhum aspecto que o filme coloca naquela época que você diz: ‘Ah, não, hoje tá diferente, hoje resolveu, hoje não é mais assim’. Ao contrário, tudo piorou. A nossa política, a nossa visão em relação à Amazônia, independentemente do governo, que comete os mesmos erros e a mesma visão que os militares tinham nos anos 70 de ocupação”, avalia Bodanzky. 

“Iracema” estreou em 21 de fevereiro na TV alemã ZDF.  e, posteriormente, com o sucesso da exibição, entrou na seleção do Festival de Cannes, na França, daquele ano. No Brasil, circulou de forma semi clandestina em cineclubes até que, em 1979, foi liberado pela Censura para participar de festivais, ganhando quatro prêmios em Brasília (filme, montagem, melhor atriz para Edna e atriz coadjuvante para Conceição Senna).

“Achava que o filme ia passar num programa, numa quarta-feira tarde da noite, e iria morrer ali. Era inverno e, naquela época, a Alemanha só tinha dois canais estatais. Ia ter um jogo de futebol muito importante no primeiro canal. E eu falei: ‘Ih, ninguém vai ver o Iracema’. Acontece que deu uma nevasca, e não teve jogo. Quem ligou a televisão, acabou vendo ‘Iracema’. Críticos viram e escreveram artigos sobre o filme, algo que não era comum para aquele programa. E chamou a atenção do (antropólogo francês) Jean Rouch, que, por sua vez, indicou o filme para o Festival de Cannes, sendo aceito na Semana da Crítica. A partir daí, não parou mais”, lembra.

As características do filme, borrando as fronteiras entre documentário e ficção, “vem muito do jeito” do realizador. “Eu era repórter, né? Num dos trabalhos, como freelancer da revista ‘Realidade’, me mandaram para a cidade de Paragominas, no Pará, para cobrir uma matéria sobre dinheiro falso. Durante as pesquisas, fiquei esperando me buscarem num posto de gasolina, na beira da estrada. E fiquei lá observando tudo aquilo que acontecia ali, com os choferes de caminhão, a quase totalidade do sul, trazendo meninas e as trocando entre eles. Durante o dia, era um lugar de abastecimento e, à noite, aquilo virava um grande bordel. E pensei: se um dia eu fosse contar a história dessa estrada, seria através desses dois personagens: o chofer de caminhão e a menina que se prostitui”, recorda.

O cineasta carregou a história de “Iracema” na cabeça por anos até que teve a oportunidade de conversar com um produtor da ZDF. “Contei para ele o que vi e ele achei legal. ‘Mas você nunca dirigiu um filme. Me traga uma coisa concreta para eu ver’, pediu. Aí saí com o meu fusquinha de São Paulo, junto com os meus parceiros de projeto – Orlando Senna e Wolf Gauer – em direção à Transamazônica. Isso em 1973. Eu carregava sempre uma câmera Super 8 e fui registrando tudo com ela, enquanto o Orlando ia escrevendo, e o Wolf, fotografando. Quando a gente voltou da viagem, juntei os rolinhos, colando um atrás do outro, sem qualquer edição. E mostrei para o produtor, que ficou fascinado e falou: ‘Olha, se você me garantir estas imagens que está me mostrando no filme, eu produzo’”.

Bodanzky destaca que, se hoje olharmos para aqueles 25 minutos de imagens em Super 8, “o filme já estava todo contido ali”. Sobre a mescla de documentário e ficção, ele explica: “Foi a necessidade que fez esse hibridismo, porque a gente precisava ter um controle sobre a história que a gente ia contar”. Nesse sentido, segundo ele, precisam exercer algum domínio sobre os dois protagonistas. “A gente escolheu, então, o Pereio e, depois de muita dificuldade e sorte, achamos a Edna. Essas duas figuras foram jogadas nas situações que a gente queria provocar. O entorno eram pessoas que não tinham consciência do que estava acontecendo. Achavam que esses dois personagens estavam lá por acaso e não que eram os nossos elementos provocadores”.

Olhares para o Brasil de uma época

Nos últimos anos, Jorge Bodanzky realizou uma série de obras voltadas para as questões indígena e da Amazônia. Paralelamente, também vinha concebendo um trabalho mais pessoal, sobre a artista plástica  Eleonore Koch, pintora alemã radicada no Brasil. A editora Cosac & Naif havia lançado um livro sobre a artista falecida em 2018 e um jornalista, ao escrever a resenha, se deparou com o nome Rosa Bodanzky, com quem Lore havia trabalhado, e alertou o diretor. Era a mãe de Jorge. 

"Eu fiquei bastante curioso, porque eu não conhecia a Lore. Pedi para ela me receber, porque queria saber qual era a relação dela com minha mãe, que já tinha falecido há muito tempo. Descobri que Lore foi estagiária dela, trabalhando mais de dois anos juntas. Conversando com ela, parecia que estava falando com minha mãe as coisas que, mais jovem, não tinha maturidade para entender", registra o realizador.

"Pouco a pouco ela foi revelando a sua própria história, que foi se tornando tão fascinante, tão interessante, que a história da minha mãe passou a não ser a figura principal do projeto.Durante mais ou menos os últimos cinco anos da vida da Lore, eu encontrava regularmente, quase todo mês - um pouco mais espaçado, um pouco menos, dependendo das circunstâncias", recorda.

"Ela era bem alemã, bem formal. Tinha que marcar direitinho, pois havia hora para entrar e para sair. Eu respeitava muito isso", assinala Bodanzky, que fez o filme praticamente sozinho, valendo de uma pequena câmera que não chamava muito atenção. "Isso nos dava maior intimidade, a tal ponto que ela conversava comigo como se não tivesse uma câmera do lado - e eu também. A câmera passou a fazer parte integrante da paisagem da sala e não uma coisa estranha".

O diretor imaginava que que aqueles encontros poderiam resultar num curta-metragem, o que acabou mudando após a morte de Lore, quando ela deixou para Bodanzky mais de duas mil cartas, cartões postais, fotografias, negativos e uma grande quantidade de diários. "Eu falei: 'A história dela é muito mais complexa do que aparece, inclusive em relação ao que tinha me contado", afirma. 

Para Bodanzky, o filme carrega vários olhares para o Brasil de uma época, sobre questões como a imigração e a participação da mulher do cenário artístico. "Uma coisa interessante é a que a gente tem pouquíssimos relatos de melhores artistas nos anos 50 e 60. Fico muito feliz com a possibilidade de o público, por mais diferenciado que seja, em algum momento se identificar com uma personagem tão complexa e diversa".