A fina chuva que insistia em cair sobre Ouro Preto deixava o ar da cidade colonial ainda mais bucólico. No horizonte, nuvens baixas encobriram as montanhas que cercam o município, e o acúmulo das muitas gotinhas nas ruas de pedra exigiam dos passantes atenção redobrada para não escorregar pelas ladeiras centenárias. O clima estava soturno, afinal.

Mas por detrás de uma das fachadas históricas, formava-se um ambiente festivo e caloroso, tomado por uma voz vibrante e por cheiro de café fresco. Quem falava era Marília Toffolo, que apresentava aos presentes os muitos itens do passado que decoram a casa, como ferros antigos de passar roupa, louças belamente decoradas e uma torradeira de ferro. “Você colocava o seu pão deste lado, e, o do outro, o do seu namorado”, indicava Marília, enquanto explicava alegremente o funcionamento do equipamento.

No andar de cima, um pouco mais contido, mas não menos eloquente, Ronaldo Toffolo apresentava a sua imensa coleção de CDs. Todas as quatro paredes do escritório da família são amontoadas por discos a laser, contendo majoritariamente música clássica. Ronaldo não tem ideia de quantos disquinhos têm.

Rodolfo Toffolo fala do amor à música. Rapha Garcia / Divulgação

“À noite, eles transam entre si e se reproduzem”, brinca. Foi nesse ambiente que respira história e amor pela música que surgiu a Orquestra Ouro Preto, que completa um quarto de século anos em 2025. A reportagem foi convidada para conhecer onde tudo começou em uma viagem a Ouro Preto na última segunda-feira, 17 de março.

Marília e Ronaldo são pais de Rodrigo Toffolo, o maestro da orquestra, e de outros quatro filhos, Rodolfo, Mara, Marina e Ronaldo, todos integrantes do grupo, os três primeiros como violinistas e o último como produtor. Ainda crianças, Ronaldo Toffolo, o pai, inscreveu todos os filhos em aulas de violino.

Despertava ali, nos quatro, o sentimento de amor pela música que, 25 anos atrás, se concretizaria na criação da orquestra. “Todo esse ambiente de música, de certa forma, foi o elemento incubador de toda uma escolha que não foi premeditada. Toda a minha meninada, e a minha esposa, que deu o aporte fundamental, e principalmente o Rodrigo, com a sua liderança, fizeram com que tivéssemos a oportunidade de recebê-los para dizer: ‘estamos aqui’”, salienta o pai.

Depois do café na casa onde hoje também mora Rodrigo, e de onde não pretende “nunca mais sair”, o grupo seguiu para a Casa da Ópera, teatro datado de 1770 e o mais antigo da América do Sul ainda em funcionamento.

Lá, Rodrigo conversou com jornalistas sobre as comemorações dos 25 anos da Orquestra Ouro Preto, relembrou épocas difíceis e deu detalhes sobre o que ainda pretende fazer. Era nítido o brilho que o maestro sustentava no olhar. “Nos anos 2000, a opção para quem tocava violino era ir embora. Mas a Orquestra Ouro Preto representa exatamente o contrário: 25 anos depois, o Estado tem pujança na música”, celebra.

Ópera de Marcelo Rubens Paiva

De cima do palco, o maestro apresentou uma das grandes novidades deste ano. A Orquestra Ouro Preto está se preparando para lançar uma ópera baseada na obra “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva, também autor de “Ainda Estou Aqui”, que inspirou o longa-metragem vencedor do melhor filme internacional no Oscar.

E como parece não conhecer a palavra “impossível”, a obra ainda será apresentada na Praia de Copacabana, no dia 12 de junho. Em agosto, o espetáculo vem para cá, em montagem no Palácio das Artes. A orquestra já transformou em ópera duas outras grandes obras literárias, “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, e “Hilda Furacão”, de Roberto Drummond.

“Eu estava fechando a edição de ‘O Auto da Compadecida’, liguei para o Marcelo, e acabamos conversando sobre ‘Feliz Ano Velho’ e a ideia de adaptá-lo. Compartilhei minha visão sobre o livro, que, apesar de abordar uma tragédia, não necessariamente nos lança nela. E na época eu nem sabia que haveria um filme com outra obra dele. Tomei um susto! É incrível ver os clássicos da literatura ganhando espaço no teatro. Temos muito potencial para isso! E estrear em Copacabana será muito especial”, celebra o maestro.

A obra de Marcelo Rubens Paiva foi publicada em 1982 e é uma autobiografia que conta a história do acidente que o deixou tetraplégico.

“Optamos por incluir o Marcelinho na obra, representando o Marcelo jovem, que dialoga tanto com sua versão mais velha quanto com o pai. Em determinado momento, ele narra a cena em que sai para o parque e encontra outros cadeirantes, culminando na grande valsa das cadeiras de rodas – uma passagem que representa bem o sentimento que o livro me transmite. Essa valsa é um dos momentos mais belos da obra”, conta. Rodrigo contou que Tim Rescala para criar as músicas da ópera, que também terá participação especial de Arrigo Barnabé.

O que já vem por aí

Até a obra de Marcelo Rubens Paiva chegar ao público, muita água vai rolar na programação da Orquestra de Ouro Preto. Já nesta sexta-feira (21), o grupo lança o seu 22º álbum, o “Orquestra Ouro Preto: Villa-Lobos, Piazzolla e Mehmari”.

“A história dos discos mostra como a gravação é essencial. No entanto, ela é apenas um subproduto da música – o verdadeiro acontecimento está na performance ao vivo. Nem todo mundo sabe, mas Vivaldi fez sonetos para “As Quatro Estações”. Nesse disco, apresentamos os sonetos transformados em música”, aponta o maestro Rodrigo Toffolo.

No domingo (23), a orquestra volta com a nova temporada da série Domingos Clássicos, que, na ocasião, prestará homenagem ao compositor e bandoneonista Rufo Herrera, com participação do Quinteto Tempos, grupo de instrumentistas formado por Rufo há mais de 30 anos. Herrera, aliás, esteve presente no concerto realizado pela Orquestra na Casa da Ópera. Ele, que foi um “professor rígido” dos irmãos Ruffalo, do alto de seus 92 anos, se tocou bandoneon no tango “El Choclo”, de Angel Villodo.

A programação de comemoração dos 25 anos da Orquestra Ouro Preto ainda conta com concertos confirmados em diferentes cantos do país, além de uma apresentação gratuita de “Valencianas”, com Alceu Valença, na praça da Liberdade, previsto para 26 de junho.

Ao ser perguntado sobre o que enxerga ao olhar para o quarto de século da orquestra, Rodrigo Tofallo responde que é um grupo mais “de olhar para frente.” “Mas quando eu revisito o que a orquestra já produziu e gravou, percebemos que conseguimos deixar um legado e de ser um ponto de referência para outros grupos. Descobrimos uma maneira única de se fazer orquestra”, arremata.