Quando morrer, Fabiana Cozza dos Santos quer ser enterrada em Minas Gerais.
O desejo já havia sido confidenciado a pessoas próximas, mas perigava ser mal interpretado como simples exagero, um vago modo de dizer. Agora, a cantora negra-mestiça nascida em São Paulo voltou a falar dessa vontade antiga em uma recente conversa por telefone com a reportagem de O TEMPO.
A declaração, aliás, nada tem de mórbida, como pode soar em um primeiro momento. É muito mais uma expressão de amor e identificação, cujo peso, talvez, só outra pessoa de santo possa compreender.
“Sinto que Minas é o meu lugar. E por isso gostaria de ser enterrada nesse chão. O enterro, para nós, do candomblé, marca o momento do reencontro com a terra. E é por essa terra que eu gostaria de ser abraçada”, anuncia, dando a dimensão do que representa, para ela, trazer para Belo Horizonte, neste sábado (8) e domingo (9), um dos seus espetáculos mais íntimos, que, não por acaso, carrega no título o seu último nome de batismo: “Dos Santos”.
O show tem origem em um disco homônimo da artista, de 2020, que ela encara como um divisor de águas em sua trajetória artística e pessoal. Neste trabalho, pela primeira vez, Fabiana se dedica integralmente ao canto de fé, às rezas e religiosidades afro-indígenas – manifestações que, é verdade, já figuravam em faixas de outros álbuns da sua discografia, mas ainda não ocupavam, ao menos de maneira tão objetiva, tanta centralidade. “Talvez, se não fossem os relatos que recebo, eu não tivesse ideia de como as músicas desse projeto chegam nas pessoas. Elas me contam que o disco acompanhou momentos de cura, que as encaram como uma oração...”, relata.
Mas o espetáculo tampouco é uma simples transposição do disco para os palcos. A obra fonográfica, afinal, é mais extensa, com 19 músicas, apresentadas em uma narrativa que funciona para o áudio. “Para uma criação na cena, a proposta é outra e está mais ligada ao imaginário que essas canções despertam em nós. É um roteiro de 15 canções, onde esse território do sagrado negro-indígena é perfilado musicalmente, mas também pelo meu corpo, pelo meu deslocamento cênico, que eu sempre explorei nas apresentações que faço”, aponta.
A força na palavra e na presença
Fabiana Cozza é enfática ao anunciar que “Dos Santos” não tem um formato espetaculoso, investindo mais na prosódia, no poder das palavras e presenças. “É um show onde as coisas brotam de uma semente. Ele é concentrado, um sumo de rezas, cantos, forças que regem a vida da gente, inspiradas no candomblé, nas juremas sagradas, nos congados, reinados e nos catimbós do nordeste”, descreve, acrescentando que leva, para o palco, emoções que carrega das experiências vividas nesses territórios sagrados.
Na capital mineira, o espetáculo é engrandecido, segundo a própria artista, pela presença e participação de representantes da Guarda de Moçambique dos Ciriacos, localizada em Contagem, na região metropolitana de BH. “Eu arriscaria dizer que este é um dos grupos de Reinado de maior relevância do Brasil, porque é uma guarda que tem tradição e respeito pela tradição, algo que tem a ver com o que (a pensadora, ensaísta, poeta e dramaturga) Leda Maria Martins nos ensina sobre o tempo como espiral da vida”, reflete.
Agora celebrada, porém, a participação quase não aconteceu. “Neste período de quaresma, para a maioria das culturas negras de terreiro, de congado, de reinado, não se toca tambor. Então, quando conversei com o Seu Antônio Jorge Muniz (uma das lideranças da guarda), havia essa preocupação”, relata Fabiana, que logo tratou de explicar que a simples presença e o canto deles já seriam suficientes para emprestar à apresentação algo de especial. “Então, ele e a comunidade aceitaram o convite e estarão presentes, mas sem os tambores, que vão permanecer descansando”, antecipa.
Além dos Ciriacos, Fabiana é acompanhada dos companheiros de estrada Fi Maróstica, baixista, que também assina a direção artística do projeto, Fábio Leal, guitarrista, e Cléber Almeida, percussionista.
A negra música brasileira
Dos afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes, passando por Os Tincoãs e Dorival Caymmi, são muitos os artistas que imprimiram na história da música popular brasileira a religiosidade de matriz africana. Nomes, obviamente, que são referência para o trabalho de Fabiana Cozza, mas que não devem ser vistos como uma exceção, como um ponto fora da curva.
“A música brasileira é essencialmente negra. Não dá para fugir disso, não dá para se esquivar: é uma realidade que consta nos livros de história. Ainda nos séculos XVI, XVII e XVIII temos registros mostrando que os músicos que eram preparados para se apresentarem para a corte portuguesa eram os chamados ‘mulatos’. Se é verdade que eles recebiam orientação estrangeira, de europeus, é também verdade é que a execução era deles, que traziam na bagagem, no corpo, suas próprias referências, o seu próprio modo de fazer música”, analisa a cantora.
“E quando a gente fala dessa gama de expressividade negra, a gente tem o tambor como elemento aglutinador e difusor não só da música como linguagem artística, mas também de um pensamento. O tambor é expansivo, expressivo de filosofias que foram trazidas de África para cá e que instalam uma ética do viver. E ‘Dos Santos’ é um espetáculo sobre isso. Sobre a força e a espada de Ogum, que, com sua lança, nos lembra da importância de estarmos juntos, fortes e de cuidarmos uns dos outros, sem deixar ninguém para trás. Sobre as águas de Oxum e Iemanjá que nos lembram que precisamos encarar a vida com fluidez, pois as águas, como a vida, tudo ocupam”, inteira a artista.
Em tempo: ao abrir a entrevista falando de morte e finalizar falando de vida, ainda que inconscientemente, Fabiana Cozza parece refletir, em forma e conteúdo, uma visão integrada e cíclica pela qual esses dois acontecimentos – morte e vida – são interpretados à luz do seu candomblé, reforçando um cuidado que, se não escapa à conversa com a reportagem, tampouco foge ao disco ou ao espetáculo que, enfim, traz a Belo Horizonte.
SERVIÇO
O quê. Fabiana Cozza em “Dos Santos”
Quando. Neste sábado (9), às 20h, e domingo (9), às 19h
Onde. Teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas (rua da Bahia, 2.244, Lourdes)
Quanto. A partir de R$ 12,75 (meia entrada, para sócios do Minas Tênis Clube ou associados Unimed BH); até R$ 30 (inteira). Ingressos disponíveis no Sympla ou nas bilheterias do teatro.